COLUNA | Quando não podemos ou não queremos interromper o uso de drogas: as estratégias de redução de danos como possibilidade

No final do século XIX, a cocaína era vendida como remédio.
https://hypescience.com/10-inacreditaveis-propagandas-antigas-de-cocaina-e-outras-drogas/

O jargão “diga não às drogas” tão falado para todos nós logo no início de nossas adolescências nunca impediu que boa parte das pessoas deixassem de se aventurar em diferentes tipos de viagens com o uso de substâncias psicoativas. Aliás, somos advertidos o tempo todo pelos mais conservadores para que nunca experimentemos qualquer destas substâncias e, mesmo assim, muitos de nós a usamos e gostamos. Isto acontece desde as drogas lícitas, como o álcool e o tabaco, assim como as drogas ilícitas, desde a maconha até o MDMA.

Obviamente que cada droga promove viagens específicas de acordo com seus princípios ativos e composições, também sofrendo a influência dos cenários e contextos onde elas são utilizadas. É óbvio que os fracassados slogans do “diga não às drogas” ou “nunca experimente drogas” nunca obtiveram qualquer eficácia comprovada e a humanidade jamais deixou de experimentar os efeitos das mais variadas substâncias psicoativas ao longo de sua existência, seja a partir dos contextos ritualísticos/religiosos ou mesmo em contextos festivos (a própria igreja católica utiliza o vinho como representação do sangue de Cristo, isto sem mencionarmos que é justamente o álcool que mundialmente hoje é o maior causador de gastos no campo da saúde pública).

O próprio pai da Psicanálise deixou claro em seu texto O Mal-estar na Cultura (1930) que a intoxicação do próprio corpo é o meio mais eficaz para se esquivar do mal-estar intrínseco à vida civilizada, ainda que seja o modo estúpido para o alívio da angústia de se viver. Alguns escolhem tal metodologia de evitação do mal-estar através de usos pontuais, outros, sucumbem ao uso abusivo, e isto inclui tanto o uso de drogas lícitas, ilícitas e aquelas prescritas pela faminta indústria farmacêutica – tendo o Brasil como um dos países que mais consomem ansiolíticos no mundo, portanto, não sejamos hipócritas!

Além disto, precisamos deixar claro que não é a maior parte dos usuários de drogas ilícitas que sucumbem ao uso abusivo, pelo contrário, os usuários problemáticos destas drogas ainda é a menor parte do contingente de usuários destas substâncias. Prova disto é a pesquisa realizada pela FIOCRUZ sobre o perfil dos uusários de crack no Brasil (https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-lanca-livro-digital-da-pesquisa-nacional-sobre-o-uso-de-crack) lançada no ano de 2013 com resultados que questionam a ideia de que os usuários de crack se viciam num curto espaço de tempo e que por este motivo precisam se submter às internações forçadas. A ideia de que o crack vicia instantaneamente cumpriu apenas a função de autorizar a “limpeza urbana” das grandes cidades às vésperas da Copa do Mundo daqueles considerados refugos sociais. A partir da pesquisa da FIOCRUZ e mesmo através de minha experiência clínica com usuários de drogas é possível afirmar que nem todos que usam drogas se tornarão viciados, ainda que não possamos dizer que não haja prejuízos à saúde incluindo as medicações prescritas pelas mais diferentes especialidades médicas, tendo o Clonazepam como carro-chefe!



O que podemos dizer é que as estratégias de tratamento em saúde consideradas proibicionistas – aquelas que entendem que o tratamento daqueles que fazem uso de drogas só pode ter sucesso caso alcance a abstinência do uso pelo paciente – rotulam os usuários como doentes irrecuperáveis e crônicos, além de detectar como fracasso quando se há um retorno ao uso. Consideramos que apesar destas estratégias alcançarem seus objetivos com um pequeno público, para o grande público de usuários, principalmente aqueles que se encontram em situações de vulnerabilidade (vivendo nas ruas, em territórios de violência, etc.) apenas os afastam do acesso aos cuidados em saúde e da construção de vínculos consistentes com os profissionais de saúde, vínculos estes que são condição para que um tratamento obtenha efeitos interessantes de regulação do uso. Regular o uso não significa proibir e é neste ponto que pensamos nas estratégias antiproibicionistas de Redução de Danos: troca de seringas para o não contágio do HIV, orientação de modos de usos menos danosos à saúde, fortalecimento de vínculos com os profissionais e não a imposição do medo, garantia de direitos, acesso a preservativos, informação sobre os efeitos das substâncias e usos arriscados concomitante com outras substâncias e outros benefícios psicossociais.

Carl Hart, um pesquisador importante do campo das drogas e professor de psicologia da Universidade de Columbia (Nova York), negro, e que teve uma vida díficil no subúrbio de Miami, assume hoje um lugar de destaque na militância por um mundo que não estigmatize e exclua os usuários de drogas, sejam os usuários recreativos ou aqueles que possuem algum uso abusivo. Em maio de 2019, na Harm Reduction International Conference que aconteceu na cidade do Porto (Portugal) reunindo profissionais, usuários de drogas e pesquisadores do mundo todo para uma discussão antiproibicionista, deixa claro: “Precisamos sair do armário! Nós, que ocupamos lugares sociais de destaque, precisamos falar dos nossos usos!” com o intuito de desconstruirmos o imaginário social de que um usuário de drogas é sempre alguém que tem como destino a miséria e a morte.

Na mesma direção de Carl Hart (antiproibicionista) e considerando a impossibilidade de um mundo que nunca abriu mão das drogas, destacamos as estratégias de Redução de Danos como possibilidade única de manutenção da vida. Tais estratégias estão presentes em diferentes políticas sobre drogas em diferentes países do mundo, – com destaque em Portugal, que descriminalizou o uso de todas as drogas adotando a Redução de Danos como carro-chefe de suas ações – como um caminho possível para aqueles que se aventuram no uso das mais variadas substâncias e que não podem ou não querem interromper seus usos.

Aqui no Brasil, as estratégias de Redução de Danos surgiram entre os anos 80 e 90 diante das epidemias da AIDS e das hepatites virais. Foram os próprios usuários de drogas injetáveis, mais especificamente de cocaína injetável (algo mais raro na atualidade pois houve uma migração do uso injetável para outros modos de uso e para outras substâncias) que ao pressionarem o governo receberam incentivos e fundaram centenas de associações de Redução de Danos (tendo a ABORDA[1] como destaque: http://abordabrasil.blogspot.com/) e implantaram os Programas de Trocas de Seringas para que não houvesse o compartilhamento das seringas evitando assim a contaminação. O que se verificou naquele momento foi uma queda considerável da contaminação entre os usuários de drogas.

A partir de estratégias como esta, verificamos hoje um grande menu de possibilidades de estratégias de redução dos riscos e minimização dos danos do uso de drogas presentes tanto nas ações de ONGs quanto nos sistemas públicos de saúde do mundo, incluindo o Brasil que apesar de uma política de drogas bastante conservadora, sustenta portarias de Redução de Danos desde o ano de 2005, lançadas pelo Ministério da Saúde.

No Brasil destacamos os CAPS-ad (Centros de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas), dispositivos do SUS, como instituições que promovem este tipo de cuidado e que existe em todo o território nacional. Além dos CAPS-ad existem outros como os Consultórios na Rua, Unidades de Acolhimento e outros tipos de ações de saúde territoriais sob financiamento público[2]. No nível internacional, destacamos a ONG Kosmicare em Lisboa (Portugal) que oferece informações de uso seguro e testagem das drogas para verificação dos impactos à saúde presencialmente em diferentes festivais de música eletrônica por todo o país (https://www.kosmicare.org/). Ainda falando da realidade brasileira, destacamos a ONG Centro de Convivência É de Lei (https://edelei.org/), na cidade de São Paulo, que promove aproximação, construção de vínculos e estratégias de usos menos danosos para um público em situação de vulnerabilidade no centro da cidade, oferecendo ainda um espaço de convivência onde há profissionais qualificados para o acompanhamento do casos e desenvolvimento de atividades culturais e terapêuticas.

Não apostamos em longas internações como método principal de tratamento, mas sabemos que há exceções a regra diante de casos limites e que requerem a proteção institucional (e é por este motivo que hoje há no BRasil CAPS-ad III, com leitos para o acolhimento destes usuários). Contudo, o motor do trabalho das equipes que utilizam as estratégias de Redução de Danos é a aproximação, a construção de vínculos, o acolhimento e a construção de um tratamento específico para cada usuário sem que caiamos nas estratégias pré construídas e que teoricamente cumprem protocolos como se todos os usuários de drogas fossem iguais. Acolha cada um, não puna!

[1] Associação Brasileira de Redução de Danos.
[2] Que no governo atual vem sofrendo ataques constantes com o intuito de promover estratégias de internação involuntária em instituições religiosas e que recebem dinheiro público sem que haja qualquer regulação dos conselhos profissionais e do Ministério da Saúde.

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