COLUNA | Vamos conversar sobre linguagem neutra? (Parte III)

Chegamos até aqui, na parte III, desta nossa conversa sobre linguagem neutra, mas se você não acompanhou o percurso que estamos fazendo, leia as colunas anteriores (Vamos conversar sobre linguagem neutra? Parte I) e (Vamos conversar sobre linguagem neutra? Parte II).

Vou te colocar a par deste papo, é o seguinte: eu resolvi propor esta conversa sobre linguagem neutra, pois me deparei com uma publicação compartilhada no Facebook, de um texto de uma professora de português falando sobre a linguagem neutra, então, depois de lê-lo, decidi me posicionar.

Lembrando que esta coluna-resposta está sendo dividida em partes, porque o tema é complexo e não quero tratá-lo de forma superficial.

Na parte I, eu abordei dois tópicos fundamentais: identidade docente e educação linguística na educação básica. Eu comecei com a filosofia da educação justamente para que no final da série você possa compreender como podemos tratar esta problemática.

Na parte II, falei sobre a língua(gem) ser um sistema organizado, mas não por isso incoerente e que pode se alterar de acordo com o contexto sociocultural na qual está inserida.

Nesta parte, trato ainda sobre aspectos relacionados à linguística, e vou continuar usando a dialogação escrita como recurso didático, a fim de me fazer o mais claro possível. Além disso, uso dados da história da língua portuguesa. Quero reiterar que a ideia é lançar luz sobre o tema e de modo algum propor normatizações, até porque a língua(gem) é dinâmica.

Bom, dito tudo isso, continuo, então, com a dialogação escrita com o texto original da professora. Vou marcar o texto dela em negrito e entre aspas e o meu comentário em fonte normal.

O texto dela começa assim:

“Vamos conversar com a tia.

Não sou homofóbica, transfóbica, gordofóbica, nãobinariofóbica e o kralho a 4 que queiram inventar de fobias aí. Eu sou professora de português. Eu estava explicando um conceito de português e fui chamada de desrespeitosa por isso (ué).

Eu estava explicando porque não faz diferença nenhuma mudar a vogal temática de substantivos e adjetivos para ser ‘neutre’.

Em português, a vogal temática na maioria das vezes não define gênero. Gênero é definido pelo artigo que acompanha a palavra. Vou mostrar pra vocês:

O motorista. Termina em A e não é feminino.

O poeta. Termina em A e não é feminino.

A ação, depressão, impressão, ficção. Todas as palavras que terminam em ção são femininas, embora terminem com O.

Boa parte dos adjetivos da língua portuguesa podem ser tanto masculinos quanto femininos, independentemente da letra final: feliz, triste, alerta, inteligente, emocionante, livre, doente, especial, sedutor, agradável, etc.

Terminar uma palavra com E não faz com que ela seja neutra.

A alface. Termina em E e é feminino.

O elefante. Termina em E e é masculino.

Como o gênero em português é determinado muito mais pelos artigos do que pelas vogais temáticas, se vocês querem uma língua neutra, precisam criar um artigo neutro, não encher um texto de X, @ e E.

E mesmo que fosse o caso, o português não aceita gênero neutro. Vocês teriam que mudar um idioma inteiro para combater o “preconceito”.

Neste último trecho, ela fala como se nossa língua fosse totalmente autonôma, como se aquilo que é externo a ela não tivesse qualquer influência em sua construção, o que é um equívoco enorme. A língua portuguesa brasileira já é uma alteração bem diferenciada do português europeu, aliás, o português moderno é bastante diferente do português anterior.

A língua é um elemento que compõe a cultura, e tudo na cultura é produzido pelo humano, ou seja, o humano por meio de algumas formas interfere na construção do idioma. Por exemplo, o uso de regras para o funcionamento da língua é uma determinação de grupos de pessoas: linguistas, gramáticos, escritores. Todas estas interferências são arbitrárias e são realizadas conforme a ideologia desses grupos que ocupam lugar de poder e privilégio.

Vamos recorrer à história para compreender esse fenômeno. A língua portuguesa tem origem na língua latina, a qual era falada em uma região chamada Lácio na Península Itálica, era a língua do povo romano. Por causa de conflitos político-histórico-geográficos, lá pelo século III a.C., quando os romanos ocuparam a Península Ibérica por meio de conquistas militares, impuseram aos derrotados os seus costumes, suas instituições, seus padrões de vida e, principalmente, a sua língua. Tudo isso reflete a cultura instaurada naquele momento ao povo daquela região.

O latim imposto foi o chamado latim vulgar que era uma variante de língua oral, de vocabulário reduzido, de uma linguagem sem preocupações estilísticas e por isso sofria frequentes e muitas alterações. Era a língua dos navegantes que invadiam, ocupavam e exploravam novas terras. Ao longo de anos, a interação do latim com as outras línguas e dialetos formou diversas outras línguas dentro do Império Romano, inclusive, a língua portuguesa.

Outro fato, a educação no Brasil até meados do século 18 era feita pelos jesuítas, havia um documento curricular, o qual funcionava como base do conteúdo pensado pela igreja católica. Neste documento constava o ensino da gramática média, da gramática superior, das humanidades, da retórica, da filosofia e da teologia. No entanto, a educação não era igual para todos, havia uma distinção determinada explicitamente pela elite colonial que morava no Brasil:

  •       A educação letrada no país era direcionada somente aos homens – as mulheres não tinham acesso aos colégios e eram educadas apenas para o ambiente doméstico ou para a vida religiosa;
  •       Os indígenas eram educados em lugares improvisados ou nas missões, e recebiam instrução catequética, ou seja, a ideia central deste tipo de educação era converter os indígenas ao cristianismo;
  •       Os filhos de colonos tinham um atendimento diferenciado, recebiam conhecimento em colégio e mais aprofundado.

Enfim, diante destes fatos históricos e outros vale apontar que sim, a língua tem inferências humanas com a finalidade de se estabelecer ideologias, perpetuar organizações, manter estilos de vida. Logo se grupos dominantes se esforçam para instituir e manter uma língua portuguesa que conserve o seu próprio domínio e privilégio – é possível eliminar formas preconceituosas e incluir formas mais acolhedoras.

Ela continua…

Entendam, em segundo lugar, que gênero linguístico, gênero literário, gênero musical, são coisas totalmente diferentes de “gênero”. Não faz absolutamente diferença nenhuma mudar gêneros de palavras. Isso não torna o mundo mais acolhedor.

Sim, faz sim, muita diferença mudar o gênero das palavras, porque se não fosse assim, não haveria nem masculino e feminino. Além disso, não haveria um enorme esforço para manter este binarismo na língua, inclusive, ela mesma como professora age para manter esse sistema.

Um mundo acolhedor é aquele construído coletivamente com a participação de todos, onde cada um, cada grupo tem espaço para fazer valer os seus direitos, onde cada indivíduo vivente e os grupos de seres viventes têm garantidos a paz, a igualdade, a justiça, a dignidade e a liberdade. Um mundo acolhedor é um projeto de vida.

Bom, eu paro por enquanto por aqui.

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