A história do Psy Trance no Brasil, ironicamente, teve seu início na mesma região que começou a história do Brasil em si: o sul da Bahia. Poucos quilômetros de diferença separam as cidades de Porto Seguro e Arraial D’ajuda, respectivamente o marco zero da civilização Brasileira e da cena Psy Trance no Brasil. Foi em Arraial D’ajuda que tudo começou para a cena nacional, com eventos feitos em pousadas e barracas de praia, composta por artistas e pessoas de fora do país que tiveram contato com o até então chamado “Goa Trance”, em outros países como Índia, Bali e Thailandia. Posteriormente, este gênero ganhou a alcunha que conhecemos hoje: “Psy Trance”.
“Let there be light!” ou… que haja luz!
Tudo começou quando o DJ italiano Max Lafranconi – mais conhecido pelos seus projetos “Etnica” e “Pleiadians” – ouviu falar das praias brasileiras no sul da Bahia, através de alguns amigos que já tinham frequentado a região. Max, que já frequentava a emergente cena de Goa, na Índia, decidiu vir até Arraial D’ajuda e replicar o que viu na Ásia no litoral baiano. Foi numa noite de Lua cheia, no ano de 1991, que o italiano fez a primeira rave em solo Tupiniquim: “Jungle Palace”, realizada na pousada “Guaiamuns”. Ali começava a história do Psy Trance no Brasil. Um pequeno passo para o homem, um grande passo para a cena nacional.
Max e sua equipe, sem dúvidas, tiveram um papel central nessa história e foram os grandes pioneiros da cena local e nacional. Lafranconi foi um dos principais colaboradores e fomentadores do movimento, trazendo todo seu expertise adquirido na cena de Goa, para o sul da Bahia. Não só como organizador de eventos, mas também como artista, deu início ao movimento psicodélico de música eletrônica no Brasil. Além de Max, Raja Ram foi outra figura muito importante para a divulgação e propagação do movimento em solo brasileiro, difundindo a sua música através de vinis e fitas K7 ao redor do país.
Uma grande mistura de povos, etnias e culturas que se transmutou em uma coisa só.
As festas reuniam pessoas de diferentes nacionalidades e localidades do mundo inteiro, sendo os nativos brasileiros a minoria nestes eventos. A idade dessas pessoas variava entre adolescentes de 15 anos até adultos mais velhos.
Quanto custava? Não havia bilheteria, nem segurança. As festas eram abertas ao público. Alguns nativos eram convidados para vender comida e bebida durante o evento, segundo o próprio Max. O início dos trabalhos era geralmente em torno das 23:00 horas e ia até o fim da tarde do dia seguinte, sempre durante os períodos de Lua cheia. A decoração ficava por conta de outro italiano, que também teve um grande papel no surgimento da cena: Michele Petillo. A ambientação era feita de bastante luz negra, tinta flúor e muita criatividade. Era necessário improvisar peças em galhos de madeira, pedras e o que mais compusesse a paisagem local. Havia muita dedicação investida no trabalho de Michelle, podendo demorar 2 semanas ou mais para decorar o local do evento. Antes de tudo começar, os nativos traziam seus filhos para ver a decoração da festa e a apresentavam aquilo como “Macumba de Gringo”.
Rompendo fronteiras
Até então as festas só vinham acontecendo na cidade de Arraial D’ajuda, Bahia. Mas rapidamente se estenderam até a cidade de Trancoso, há poucos quilômetros de sua “matriz”, também na Bahia. Isso começou a acontecer a partir de 1994, em barracas de praia como a barraca “Vegetal” e a “Casa Santa”. O movimento, com o passar do tempo, se concentrou mais em Trancoso do que na cidade vizinha.
Outros tempos, outras tecnologias
A época era outra e a tecnologia disponível também. Esqueça os “pendrives”, laptops com softwares de mixagem, CD’s, “CDJ 100s”… as músicas eram tocadas em toca-discos “Technics” (Vinil) ou em Walkman’s como “Sony Professional K7 (fita K7) e “DAT Sony D7” (fita DAT), tendo surgido logo na sequência o MiniDisk. Os falantes e sistema de som que eram alugados eram os mesmos utilizados no carnaval local da Bahia, mundialmente conhecido. Bem menos sofisticados que os atuais? Com certeza, mas isso não importava muito. Para a época era mais do que suficiente para festejar e sacudir o esqueleto por horas e horas ao som daquele som diferente, intrigante e altamente psicoativo que hoje conhecemos como Psy Trance.
Bem diferente dos dias atuais, as coisas em geral exigiam muito esforço para acontecer. Isso era devido a limitação de recursos tecnológicos da época. Instagram? Facebook? Twitter? Estavam todos longe de existir. Não havia internet sequer no Brasil! Para promover os eventos, as produções e produtores(as) tinham que sair pelas ruas distribuindo individualmente flyers (feitos a mão) para as pessoas ou colar cartazes pela cidade.
Peace Love Union Respect
O clima entre as pessoas era de “paz e amor”, ou pode-se dizer que já era início do “PLUR”, tendo um ambiente muito mais intimista e “família” do que nas grandes festas com centenas ou milhares de pessoas, hoje em dia. Não haviam seguranças nem portaria. As festas aconteciam livremente sem cobrança de ingresso e nenhum tipo de confusão acontecia para justificar contratar seguranças.
Além da música e do entretenimento
Aquele grupo de pessoas se reunindo nas praias do sul da Bahia tinha em comum não apenas o gosto musical, mas o senso de contra-cultura também. Um ato de rebeldia perante uma sociedade totalmente desequilibrada, injusta, cheia de regras e leis que não faziam muito sentido pra muita gente. Trancoso e Arraial D’ajuda, inclusive, já abrigavam e acolhiam movimentos ligados à cultura alternativa desde os anos 60. Foi justamente essa faceta da cultura Trancer que chamou a atenção de um dos maiores ícones e uma lenda viva do movimento aqui no Brasil: Rica Amaral.
Expandindo nacionalmente
Em 1995, o paulistano Rica Amaral conheceu o Goa Trance. Foi através de um vinil, apresentado por um amigo, o primeiro contato com aquele som tão distinto e inovador. Em 1996 decide fazer, juntamente com o DJ Feio, seu primeiro evento: “The Rave XXXperience”. A festa aconteceu em um sítio há cerca de 30 km da cidade de São Paulo, tendo reunido em torno de 700 pessoas. Posteriormente o nome mudou para apenas “XXXperience” e a festa tomou grandes dimensões, reunindo mais de 5 mil pessoas na sua terceira edição, em 1998. Neste mesmo ano, Rica – que até então atuava como Dentista – foi para o Boom Festival (Portugal) e quando voltou decidiu abandonar a profissão para se concentrar na sua vida como DJ e Produtor Cultural.
Mancha de dendê não sai
Depois de ter eclodido no sul da Bahia, o Psy Trance e sua cena se estenderam até a capital baiana. O grande responsável por essa conexão e por manter o dendê da psicodelia fervendo na região foi Danilo Barreto, mais conhecido como DJ Nazca. Em 1997, Danilo e seu amigo DJ Sly, juntamente com outros que tinham frequentado as festas no sul da Bahia, decidiram replicar em Salvador o que viram e viveram nas praias de Trancoso e Arraial, criando e produzindo a festa “Antes da Tempestade”: a primeira Rave na capital Baiana. Ali surgia um dos núcleos em atividade mais antigos do país: Soononmoon Organismo Subliminar, fundado pelos mesmos DJs Sly e Nazca. Posteriormente, as materializações e produções do crew baiano se estenderam por toda a Bahia, se tornando referência na região Norte/Nordeste até os dias atuais.
Disseminando a cena Psy
No fim dos anos 90, a cena já estava bem aquecida e disseminada pelo país. Vários núcleos e festas surgiram em São Paulo e região, como “Daime Tribe”, “Avonts”, “Naga Naja” e “Psycho Garden”. Em 99, na Chapada dos Veadeiros, também surgia a “Spadelic”, produzida por Kranti Pessoa. Assim a cena nacional de Psy Trance começava a ganhar forma e consistência.
Primeiro Festival no Brasil
Foi no ano 2000, no litoral norte de São Paulo, que o primeiro festival de “Psy Trance” aconteceu no Brasil: “Celebra Brasil”. O festival teve 4 dias e 3 noites de duração, sendo o primeiro evento a trazer uma atração internacional para o Brasil. Essa foi a 1ª edição do festival, tendo reunido entre 2 a 3 mil pessoas, segundo seu idealizador Max Lafranconi. Houve ainda mais 2 edições do festival: em Paraty-SP (2002) e Arujá-SP (2003), com público de 3 mil e 2 mil pessoas, respectivamente.
Da festa para a cidade, da cidade para a festa
Em 2001, com a chegada e a popularização da Internet no Brasil, as coisas mudaram um pouco. A disseminação da cena se intensificou bastante, se estendendo a todos os 4 cantos do país. A partir dali o que se conhece é história, surgindo grandes festas com públicos massivos, vide “Kabballah”, “Tribe”, “Universo Paralello” e a própria “XXXperience”, que agora já conta com milhares e milhares de pessoas comparecendo em suas edições por todo o país.
A nova tecnologia mudou, de fato, a maneira de se comunicar, trazendo novas ferramentas para divulgação e comunicação entre público e festa. A mudança veio com pontos positivos, como a maior facilidade de conhecer algum evento ou entrar em contato com outras pessoas da cena. Mas teve seus pontos negativos também. Segundo Rica Amaral, antes do “boom” da Internet, “as pessoas levavam a festa para a cidade e não a cidade para a festa”, fazendo alusão a inversão de valores que as novas tecnologias começaram a propiciar a partir dali.
O celular é um bom exemplo dessa faca de dois gumes chamada “tecnologia”: pode ser usado para pegar coordenadas de um evento mas também pode ser uma distração dentro do próprio evento. Um paradoxo, talvez. Vemos isso com muito mais intensidade nos dias atuais, inclusive. As questões e debates sobre as redes sociais, por exemplo, vem sendo discutidas constantemente. Prós e contras são levantados o tempo todo, por toda a sociedade. Mas a verdade é que não há muito o que fazer, a tecnologia está em constante mudança e evolução, por consequência a nossa sociedade também.
Cabe a nós utilizarmos tais ferramentas tecnológicas com sabedoria e ponderação, pois estamos cada vez mais sujeitos às suas influências. Afinal, é através delas que essa matéria está chegando até você, leitor.
Créditos:
Max Lafranconi
Rica Amaral
Danilo Barreto