COLUNA | E aí? Cadê os pretos? Cadê as Trans? Cadê a diversidade?

Não é de hoje que sabemos que mais de 50% da população é negra e que somos o país número 1° que mais mata pessoas trans, travestis e trangêneros, e estas informações trazem a reflexão para o entendimento onde estão essas pessoas em clubs, baladas, festivais e, também, em pick-ups? A cada dia que passa falamos sobre diversidade, mas o preconceito aumenta e é mascarado no dia a dia para quem faz parte da comunidade LGBTQIA+ e da comunidade preta. Diariamente, é levantar a voz contra o preconceito e racismo.

Já parou para pensar em como o mundo gira em torno de políticas dominantemente conservadoras, onde a liberdade vira praticamente uma realidade difícil de alcançar?

Quando você pensa em música eletrônica ou nas pessoas que a amam, faça um exercício: feche os olhos e tente imaginar um lugar onde você possa desfrutar por algumas horas a liberdade, que é sua por direito, para onde a sua mente te leva? Talvez para muitos, a pista de dança seja a resposta imediata, mas quantas dessas pistas são dirigidas por um DJ preto ou por uma DJ trans ou por um DJ trans preto? Já analisou em quanto essas pessoas estão marginalizadas e poderiam ocupar um lugar de destaque? 

Para a gente se contextualizar e entender, historicamente falando, a comunidade T (Trans, Travestis e Trangêneros) e a comunidade preta, sempre andaram em paralelo, por isso trago a vocês  uma breve contextualização:

Após o período de Stonewall nos EUA, o período Disco dominava o cenário dos clubes da época, e eles eram um espaço seguro onde podia ser quem quisesse. Era uma sensação de liberdade de expressão, na época, talvez não era possível entender, mas hoje é possível ver que este período foi uma prévia de um mundo de inclusão do qual começava a existir. Um dos principais clubes desse período era o GG Kickerbocker Barnum Room, que funcionou no final dos anos 70, era um local onde a pista de dança era composta majoritariamente por transexuais americanas e latinas. O clube chegou a receber celebridades e tinha algumas atrizes, mulheres trans e musas inspiradoras que eram frequentadoras do club e foram responsáveis por levar diversas personalidades para as noitadas na boate, que tinha como protagonismo as apresentações artísticas de transexuais. 

A legendária Carmen Xtravaganza, famosa pelas “batalhas de vogue”, mencionou em seu blog de memórias: “na época, as celebridades se misturavam com as frequentadoras nativas do clube e não se dava tanta importância à presença delas como acontece hoje em dia”.

Aqui no Brasil, entre 1971 a 1980, ainda no período da ditadura militar, ser LGBTQI+ era considerado “atentado ao pudor” e praticamente todo final de semana esse grupo de pessoas era perseguido pelo país dentro de clubs como o NostroMundo (São Paulo – 1971), Flower’s (Porto Alegre – 1971), New Aquarius (Brasília – 1978) ou o Misty (Recife – 1979). Neste mesmo período, surgia no Rio de Janeiro o primeiro jornal LGBTQIA+ do país, o Lampião da Esquina (1978-1981). O tabloide trazia matérias, agenda de eventos, denúncias de repreensão policial e diversas colunas sobre a militância LGBTQI+ da época. O jornal foi um grande veículo de fortalecimento da cultura LGBTQIA+ do país e, consequentemente, da cena noturna, que estava diretamente ligada aos movimentos e personalidades artísticas da época. 

As travestis Condessa Mônica (dona do NostroMundo) e Andréa de Mayo (Prohibidu’s club) foram figuras de extrema importância na cena paulista, onde acontecia o principal fluxo de boates nos anos 70 e 80. Frequentado por celebridades, como Rogéria, Claudia Celeste e Roberta Close, também ganhavam destaque nas principais emissoras do país através dos seus trabalhos como atriz e modelo, influenciando músicos e atores famosos da época. O documentário “São Paulo em Hi-fi”, do diretor Lufe Steffen, traz uma aula e relatos dos clubes da cena paulista entre os anos de 60 a 80, e também da importância da comunidade T para o cenário de clubes e noite do Brasil.

A comunidade negra ao longo dos anos vem contribuindo fortemente, com gêneros musicais e artistas de suma relevância, mas para o cenário da música eletrônica. A Disco Music foi o portal de acesso para que novas tendências crescessem e se tornassem sucesso dos anos 70 e 80 nos EUA, considerado o precursor da música eletrônica, e, também, atribuímos o surgimento da House Music. O público era composto, principalmente, pelas comunidades LGBTQIA+, latina e negra dos Estados Unidos, residentes dos primeiros clubes de Dance Music de Chicago. Muitos até hoje atribuem o nome “house” a Warehouse Club, conhecido reduto onde o gênero explodiu.

A população negra foi fundamental para a construção da House Music, nomes como Larry Levan, Tony Humphries, Marshall Jefferson e Derrick May são exemplos de DJs que foram cruciais para a criação e crescimento do estilo. Frankie Knuckles, um dos pioneiros do gênero, é considerado por muitos como o pai da House Music. Além de Grandmaster Flash, o DJ inventor da Quick Mix Theory: conjunto de técnicas como double-back, back-door, back-spin, e phasing, onde o DJ maneja os vinis, para frente e para trás, em mixagens que permitem criar beats próprios.

No Brasil dos anos 1970, a comunidade preta paulistana fazia encontros no Viaduto do Chá para saber dos bailes que iam rolar no fim de semana, e o viaduto ficava tomado de ponta a ponta, que inicialmente começou na rua Direita e depois passou a se reunir no viaduto e migraram para as galerias da rua 24 de Maio na segunda metade dos anos 1970. Onde permaneceram até o começo dos anos 1980, quando a Polícia Militar começou a enfrentar a comunidade. Foi então que migrou para a praça Antônio Prado, e depois para a estação de metrô São Bento. A polícia atacava fortemente a comunidade preta nesse período e os brancos não se misturavam e nem frequentavam os bailes, porque o conceito para eles era: naquele lugar só tem ladrão. 

Naquele período de cisão entre brancos e negros, vestir-se bem e manter o cabelo impecável, eram práticas decorrentes do preconceito racial: o negro deveria andar alinhado para não ser visto como maloqueiro, como bandido.

A House Music chega no Brasil no final dos anos 80 e era pejorativamente chamado de “poperô”, a House logo desponta e se torna sucesso nacional, com maior impacto nos grupos LGBTQIA+. Outro destaque é como a House Music é recebida pela população negra da época: ao ser importada pelas elites, o gênero passa a ser visto como “música de playboy”, um questionamento cheio de problemas analisando profundamente suas origens.

Dessa forma, todos os artistas considerados fundamentais para o surgimento da House Music são negros, mas ao ser disseminada pelo mundo, o estilo acaba intermediado pelos brancos de classes sociais mais altas, trazendo o reflexo das desigualdades raciais e do processo de descaracterização das culturas. Por isso, a reparação histórica e protagonismo para a população negra, e a outros grupos marginalizados socialmente no cenário da música eletrônica merece a relevância e contribuição destes para a construção da House Music, que significa um ato de resistência.

Diante de todo esse contexto histórico, com tantas travestis, transexuais diretamente ligadas a construção da cultura de pista de dança, por que hoje em dia temos um esvaziamento destas pessoas em eventos como festivais, festas e clubes? Seria uma apropriação massiva cisgênera, heterossexual e branca em absolutamente todos os meios de produção, artístico e financeiro de uma história que tem suas raízes fincadas na cena Negra e, também, LGBTQI+?

Já parou para pensar sobre isso quando você vai nos seus festivais e festas favoritos de música eletrônica? 

Com um pouco dessa contextualização histórica, acredito que você consiga reparar e começar a pensar diferente. Você, ao menos, já procurou entender de onde veio e qual é base do gênero musical que você curte?

A cultura rave e os anos 90, sem dúvida, teve uma importância fundamental na criação de novos gêneros, artistas, clubes, bandas e personalidades da cena eletrônica. Sua contribuição na história é incontestável. Mas nas raves, a música eletrônica voltava a retomar a um espaço de destaque, e trazia um pensamento que apagava e distanciava de lutas importantes que sempre estiveram ao lado da música eletrônica. Podemos chamar de uma gentrificação de raça, gênero e sexualidade nos principais clubes e eventos do segmento. A Dance Music voltava ao topo no final dos anos 90, mas a história e seus criadores ficaram no underground. Em paralelo as raves, movimentos racistas advindos dos anos 80, somado com a epidemia da SIDA (AIDS) e as políticas anti-LGBTQIA+ foram ações que marginalizaram os negros e a comunidade LGBTQIA+. Por isso, como podemos aceitar que um movimento que tinha como protagonismo diversas minorias, principalmente pessoas da comunidade T e da comunidade preta, desviou-se para um caminho tão distante das suas origens? 

Nesse traçado histórico é visível que a opressão sexista, racial e governamental sofrida pelas minorias tornou possível a existência da música eletrônica. Pautas importantes deixaram de ser reforçadas para dar lugar a uma fala mais coletiva e humanitária, e no final, não abrangia a todos e era esquecida no final de cada evento. Não se pode deixar de observar o direcionamento comercial que foi dado a Dance Music ao chegar nos países europeus. Ibiza, por exemplo, nunca foi um local diversificado e foi a partir do que acontecia lá que muita coisa se espalhou por diversos clubes, eventos, produtores de eventos, festivais e artistas na Europa.

A representatividade e diversidade em festas de música eletrônica sempre são assuntos recorrentes nas pistas de dança mais populares do Brasil e do mundo, mas de verdade, ela está há milhas de distância de realmente ter uma reparação histórica a comunidade negra, a comunidade LGBTQIA+, principalmente para pessoas transexuais e travestis. 

Aqui no Brasil, temos uma crescente de artistas e DJs tanto da comunidade preta como da comunidade T (Trans, Travestis e Trangêneros), mas todo esse processo ainda acontece grande parte em um cenário underground. Os grandes festivais e clubes de música eletrônica do país e do mundo continuam a reforçar modelos de line-ups misóginos, sexistas, preconceituosos e muitas vezes que se prendem ao óbvio, mesmo tendo algumas exceções, que trazem alguma resistência em uma indústria que continua ignorando uma dívida cultural, financeira e social com estes grupos.

Hoje, é perceptível ver line-ups e até pistas de danças mais diversas, com uma possível reparação, mas totalmente incompleta e com muitas lacunas abertas. A estruturação cis-heteronormativa e branca não tem fácil aceitação para sair do centro dos holofotes e pensar em estratégias na inserção de todos os corpos na cena. Tudo o que se configura como entretenimento hoje, também enxergamos como um local para encontros, expressão artística e posicionamento político, mas ainda não o entendemos, ou pelo menos não damos a real importância de onde surgiram as raízes e a relevância de tudo que chamamos de cena de música eletrônica. E tudo isso se materializa na hierarquização, na desvalorização monetária e na falta de reconhecimento de suas raízes, das artes e dos serviços. 

Em um lugar como o Brasil, o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo, e com uma quantidade absurda de racismo, os discursos de inclusão levantados pelos eventos de música eletrônica precisam ir além de uma lista trans free e de cotas. Cuidar do bem mais valioso de uma pista de dança, requer espaços e pessoas que garantam espaços mais seguros dentro em eventos, festivais e clubes com foco e dando luz às individualidades de cada um, principalmente com profissionais de todos os setores que saibam receber estes corpos.

Volto a dizer que é necessária uma reparação histórica de gênero e raça com foco em pessoas e, não na representatividade preocupada com lucratividade e com o fomento e protagonismo em datas e situações, somente para ser e estar dentro do politicamente correto e em busca de engajamento.

Aos profissionais envolvidos com eventos, festas, festivais e cenário da música eletrônica, deixo uma pergunta e uma reflexão: já pensou em reparar historicamente dando acesso e abertura à comunidade LGBTQIA+ e a comunidade preta?

Já viram quantos artistas estão dentro de seus line-ups?

O que esperar do futuro e principalmente do agora das pick-ups e pistas de dança?

Foto de capa: Leandro Godoi.

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Thiago Torres

Chefe de Reportagem (Profissão), Colunista e Repórter Colors DJ Magazine.

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