COLUNA | Vamos conversar sobre linguagem neutra? (Parte I)

Por esses dias, eu estava conectado ao Facebook, quando me deparei com uma publicação compartilhada de um texto de uma professora de português falando sobre a linguagem neutra, então, li o texto e, diante do que eu li, eu preciso me posicionar.

De antemão, preciso dizer que esta coluna-resposta será dividida em partes, pois o tema é complexo e não quero fazer igual minha colega de profissão que fez uma abordagem superficial.

Nesta primeira parte, vou me atentar a dois tópicos fundamentais: identidade docente e educação linguística na educação básica (Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio). Para depois, nas outras partes abordar diretamente o tema linguagem neutra.

Também vou usar a dialogação escrita como recurso didático com a finalidade de me fazer o mais claro possível. A ideia é lançar luz sobre o tema e de forma alguma propor normatizações, até porque a língua(gem) é dinâmica. Ela escapa às normas.

Vamos começar nossa reflexão pensando sobre a questão: para que serve o professor?

O papel do professor está ligado ao seu trabalho. Ele só existe se for para educar e a educação só faz sentido se for para transformar. Diante disso, podemos afirmar que a identidade de um docente é construída a partir da dialética entre escola e sociedade, pois, esse processo de construção leva em consideração as necessidades da comunidade que está inserida em um dado contexto. Por isso, a atuação da escola e do professor deve estar alicerçada nos princípios constitucionais: paz, justiça social, igualdade de direitos, liberdade e a promoção do bem a todos sem distinção. A nossa Constituição Federal é a lei maior e nela está explícito o projeto de sociedade que se pretende construir. Logo, a atuação do professor dentro da escola é regimentada e orientada por estes princípios.

Com isso em mente, passo, então, para a dialogação escrita com o texto original da professora. Vou marcar o texto dela em negrito/colorido e entre aspas e o meu comentário em fonte normal.

O texto dela começa assim:

“Vamos conversar com a tia.”

E eu também quero trazer Paulo Freire para a conversa, um educador e filósofo respeitado no mundo todo. Em sua obra intitulada “Professora, sim; tia, não”, ele indaga este esforço de reduzir a professora à condição de tia, segundo ele, é uma inocente tramoia ideológica em que, tentando-se dar a ilusão de suavizar a vida da professora, o que se tenta é, na verdade, abrandar a sua capacidade de luta, entretê-la no exercício de tarefas fundamentais (p.25). Diante disso, não quero conversar com a tia, quero conversar com a professora que é ou deveria ser uma agente de transformação social.

“Não sou homofóbica, transfóbica, gordofóbica. Eu sou professora de português.”

Primeira questão importante aqui, professora, é dizer que não aprendemos a língua portuguesa somente na escola com um professor. Aprendemos a língua portuguesa também em nossos contextos sociais com as pessoas que convivemos no dia a dia: família, amigos, vizinhos. Diante dessa situação, vale destacar que o trabalho do professor de língua portuguesa é promover a educação linguística formal (sistematizada, ou seja, aquela que é proposta do sistema brasileiro educacional) de uma criança.

Sendo assim, a escola deve funcionar como um lugar sistemático que detém a estrutura organizacional e os recursos adequados a fim de promover a educação linguística de forma responsável, inclusiva e democrática.

Já o professor, inserido nesta organização, deve desempenhar seu papel como mediador, orientando os educandos por experiências de língua(gens), a partir de atividades didático-pedagógicas em conformidade com a proposta educacional do país (LDB/BNCC).

Para deixar claro, o que é educação linguística?

A educação linguística pressupõe pedagogias ativas que visa um projeto de constante aquisição de língua(gem) pautado em um processo de reflexão contínuo a respeito do uso da língua(gem) em contextos diversos de interação e comunicação. O professor é o especialista de área e funciona como mediador dos processos de ensino e aprendizagem, enquanto o educando é responsável por desempenhar o seu papel de modo adequado, incorporando nesse processo educativo aquilo que faz sentido para a sua vida e para a coletividade.

Enfim, a educação linguística é fundamental para desenvolvermos educandos protagonistas de uma constante construção social e cultural da compreensão e do uso da língua(gem).

Em todos os processos educativos, como o próprio Freire afirma no livro, a tarefa do ensinante é também a de ser aprendiz, sendo indispensável para isso atrever-se, o aprender a ousar, para dizer não à burocratização da mente a que estamos expostos cotidianamente. Conforme Freire, é preciso atrevimento ao próprio fato de se fazer professor, educador, que se vê responsável profissionalmente pela formação permanente de um indivíduo.

É parte do processo de se educar o deseducar, porém para isso temos que assumir nossas limitações, por mais que não queiramos, às vezes, somos sim homofóbicos, transfóbicos, gordofóbicos, racistas, pois estas violências estão enraizadas no convívio social, então, precisamos assumir nossos preconceitos, desconstruí-los constantemente e orientar nossa educação no sentido de superá-los.

“Eu estava explicando um conceito de português e fui chamada de desrespeitosa por isso (ué).”

Professora, um professor deve estar pronto para ser questionado, aliás, deve estimular os seus alunos à crítica. Nesse sentido, Paulo Freire diz que os professores são referência para os seus alunos no posicionamento de luta democrática, mostrando-os que a luta em tempo algum pode se transformar em luta singular e individual, também desafiando órgãos, instituições, normas, padrões em prol da justiça social e que acima de tudo o educador esteja aberto à avaliação da sua prática.

Como educadores e educadoras somos políticos, fazemos política ao fazer educação. Se sonhamos com a democracia, que lutemos a todo momento, por uma escola em que a gente fale aos e com os educandos, para que, ouvindo-os, possamos ser por eles ouvidos também (p. 92).

Vou pular um trecho do texto original, porque se refere especificamente a questões de linguística que ficarão para as próximas partes publicadas nas colunas dos meses seguintes.

“Meu conselho é: ao invés de insistir tanto na coisa do gênero, entendam de uma vez por todas que gênero não existe, é uma coisa socialmente construída. O que existe é sexo.”

Esta afirmação é tão contraditória quanto equivocada. A própria autora do texto logo mais afirma a existência do gênero. E sim, gênero é uma construção sociocultural feita ao longo dos anos. Com um problema importante, essa construção se deu de modo opressor com relação aos outros gêneros, relegando-os à margem, ao estigma, à violência, à morte.

Freire mais uma vez é cirúrgico dizendo em sua obra que é preciso que os educandos, experimentando-se criticamente na tarefa de ler e de escrever, percebam as tramas sociais em que se constituem e se reconstituem a linguagem, a comunicação e a produção do conhecimento, fazendo da escola espaço de reflexão e conscientização. “A escola, em que se pensa, em que se atua, em que se cria, em que se fala, em que se ama, se adivinha a escola que diz sim à vida. E não a escola que emudece e me emudece” (p.63). Não é verdade, professora?!

Mais uma vez vou suprimir uma parte do texto original, porque neste trecho ele se refere especificamente a questões de linguística que ficarão para as próximas partes.

“Tenham atitude! (Palavra que termina em E e é feminina). E parem de ficar militando no sofá. (Palavra que termina em A e é masculina).”

Paulo Freire arremata: “nenhuma sociedade se afirma sem o aprimoramento de sua cultura, da ciência, da pesquisa, da tecnologia, do ensino. Tudo isso começa com a pré-escola” (p. 53).

“A imobilidade no crescimento é enfermidade e morte” (p. 125). “O saber tem tudo a ver com o crescer. Mas é preciso, absolutamente preciso, que o saber de minorias dominantes não proíba, não asfixie, não castre o crescer das imensas maiorias dominadas” (p. 127), por isso, jovens, militem sim. Movimentem-se sim em defesa de uma sociedade mais justa, mais igual, mais aberta ao diálogo e menos excludente, menos violenta, menos intolerante.

Enfim, Paulo Freire enfatiza no livro “Professora, sim; tia, não” a importância da conscientização dos professores da ideologia que manhosamente quer distorcer sua tarefa profissional e depois disso, ele orienta que os professores se livrem dessa ideologia e se apropriem de uma ideologia libertadora. Assim, esclarece, orienta e incentiva professores a assumirem o papel político-social que desempenham. Sendo a educação um ato político, requer comprometimento tanto na luta política, quanto nas reivindicações do corpo docente e na formação de cidadãos realmente críticos e atuantes.

Esta conversa não termina aqui. Ela é longa, professora.

Freire, Paulo. Professora sim, tia não: Cartas a quem ousa ensinar. Editora: Paz e Terra.

Paulo Freire

Educação Integral

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