COLUNA | PALAVRIADO: ser homem gay

Repare uma coisa. Cada pessoa que você conhece tem características visíveis e não visíveis, as quais te faz reconhecê-la como sendo uma pessoa única, no entanto, você consegue reconhecer semelhanças desta pessoa com outras pessoas e seus lugares. Veja bem, estou falando de identidade, estou falando de ser, cujo significado de acordo com o Dicionário Online de Português tem a ver com particularidade, capacidade, condição ou determinada circunstância. A visualidade da nossa identidade é nossa imagem, resultado de nossas relações com o mundo, com os outros e com a gente mesmo e aquilo que não é visível passa pelo mesmo processo. Isso acontece com todo mundo. Nossas identidades são forjadas no dia a dia de nossas relações desde quando nascemos. Bom, vou focar nas identidades gays conforme já havia dito no artigo anterior, por isso, para começo de assunto, vamos pensar um pouco acerca da questão: o que é ser gay?

Não vou usar o termo homossexual, porque a homossexualidade é uma categoria criada para diferenciar e controlar homens e mulheres fora de um padrão imposto de sexualidade. Mais para frente discutiremos este tópico. Eu vou usar o termo gay, justamente, porque acho que ele representa maior amplitude para se imaginar a figura de homens fora do padrão heterocentrado.

Nesse sentido, segundo explica o site Etimologia, a palavra gay é identificada “como um empréstimo do inglês, generalizando-se para indicar o indivíduo homossexual a partir de seu comportamento jovial e leve, cuja referência se distingue no francês gai, entendido como aquele que expressa um caráter alegre, associado ao alto alemão gāhi, indicando um estado de surpresa repentina, refletindo-se no espanhol antigo como gaio, no catalão gai, no italiano gaio e no espanhol gay, emergindo em todos os casos sobre uma possível raiz no occitano a partir das formas gai, jai, por alegre. A relação com a homossexualidade remonta ao início do século XX nos Estados Unidos, lembrando que a primeira manifestação do Orgulho Gay ocorreu em Junho de 1970, em Nova York”. Além disso, modernamente, atribuímos o termo gay mais aos homens. Partindo disso, posso dizer que há um leque de diferentes tonalidades para ser um homem gay, porque me parece que a centralidade da identidade gay é ser alegre, é se distinguir do comportamento comum aos outros homens, é fugir de uma atitude socialmente controlada. É importante dizer que em tempos anteriores, bem antes do uso do termo gay, os homens gays eram chamados de outros nomes, inclusive, de homens alegres. Enfim, me parece que a alegria na verdade está relacionada ao jeito de homens gays se comportarem, falarem, encararem a vida que se mostrava diferente da maneira de outros homens.

Sempre me incomodei com esta coisa de pessoas, amigos, familiares falarem: “Ah! Mas você não é homem. Você é gay.” Na minha cabeça, eu pensava: “Espera! Eu sou homem que gosta de homem”, ser gay é ser homem, uma coisa não exclui a outra. Aí, eu pergunto: quais são os sentidos sociais presentes nesta declaração? Com o tempo eu fui tendo contato com leituras, filmes, pessoas que me ajudaram a elaborar isso na minha cabeça. É uma declaração frequente na boca de homens e mulheres do nosso convívio diário, então é um discurso já incorporado, se tornou uma “verdade”.

Quando alguém diz: “você não é homem”, este alguém está negando a humanidade e todos os direitos que um homem gay tem sobre essa humanidade comum entre os homens, pactuada por meio da masculinidade e, quando diz “você é gay”, está coisificando a pessoa, reforçando o caráter inumano e colocando numa posição de objeto. E qual é o tratamento que se dá aos objetos? Um objeto tem valor utilitário. Você usa para determinado fim, mas não precisando mais, você o desconsidera.

Dito isso, vamos aos modelos de masculinidades gays. Vou começar com o modelo de masculinidade mais conhecido, mais usual, mais privilegiado, mais valorizado, mais desejado, ou seja, o hegemônico. Não sou eu que estou conferindo toda essas honrarias a este modelo, foi a sociedade que fez isso ao longo dos anos. O modelo hegemônico se estabeleceu como o padrão-normativo, é uma referência explícita e recomendada para todos os homens. Observe que a maioria dos homens tem pelos pelo corpo, valorizam o corpo forte, trejeitos robustos, rejeitam comportamentos que expressam sensibilidade, delicadeza, fragilidade, buscam mostrar frequentemente uma personalidade ativa, cheia de vigor e potência sexual (predação sexual).

Os homens gays mais próximos dessas características são considerados mais masculinos e, quanto mais um homem gay se distância disso, mais ele vai perdendo valor em masculinidade e vai sendo desviado para o feminino. Logo, quanto mais parecido com o padrão mais homem, quanto mais distante do padrão, menos homem.

Veja bem, não estou falando de certo e errado, estou falando de construções socioculturais que deram origem a uma referência “natural” para os homens (na verdade, se naturalizou, o link ajuda a entender isso: https://cafecomsociologia.com/ensino-de-sociologia-desnaturalizacao-naturalizacao/). Só que não existe um modelo natural, não existe um modelo de masculinidade feito pela natureza, não existe nenhum órgão do corpo humano que produza a masculinidade, nenhuma substância do organismo é capaz de fazer isso. A masculinidade não se centra no pênis e o pênis sozinho não determina a condição de ser homem, por essa razão encontramos por aí formatos plurais de masculinidades.

É importante destacar as identidades gays nas fronteiras. Uma fronteira é uma linha que divide territórios e até mesmo zonas morais. É conhecida principalmente por ser um limite político e separar grupos de pessoas, mas, geralmente, essas pessoas podem se movimentar livremente dentro das fronteiras de seus próprios territórios ou zonas, porém, para entrar em outro grupo precisa de uma certa “permissão” ou um certo conhecimento do mesmo e fazer uso disso para transitar. Lembrando que até mesmo grupos de pessoas têm sistemas políticos semelhantes ou acordos pré-negociados, suas fronteiras podem ser abertas e não defendidas. Tomando isso de forma literal e também metafórica, podemos destacar as identidades que se movimentam constantemente nas fronteiras. De modo geral, são móveis, flexíveis, subversivas, rebeldes, corajosas, capazes de movimentar a hierarquia dos modelos masculinos, a qual luta para se manter imóvel. Nesse grupo, não há um padrão único, há, na verdade, um encontro, ampliando tipos, expressões e vivências. Tem um pouco de masculino e de não masculino, de feminino e de não feminino e outras possibilidades de ser, participar e expressar.

Quero terminar este artigo lembrando que existe uma sequência desse assunto que se desdobrará nas próximas publicações, pois nelas irei abordar outros tópicos relacionados às identidades gays. Então, não vou concluir por aqui, aliás nem que eu quisesse esse assunto não se conclui. O próximo tópico é sobre homens gays “se passarem” por héteros.

Caso você queira ler um material mais completo e amplo, eu indico a minha dissertação de mestrado, disponível no Banco de Teses da EACH/USP. [linkar: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100135/tde-22072022-125402/pt-br.php]

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Thiago Saveda

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