ENTREVISTA | A ESPINHA DORSAL DA PSICODELIA – Capítulo I

Série de entrevistas sobre estrutura e montagem de festas e festivais de Psytrance BR Capítulo I – A mente por trás do grupo Gênesis Bioconstrução

Olá, Colors!

Conforme citei na minha primeira coluna desta querida revista, a vivência experimentada nos festivais me permitiu e me permite conhecer não apenas uma pista de dança cheia de cores, som bom e público miscigenado. 

No Trance temos a oportunidade de enxergarmos além do óbvio, ou seja, a vivência num festival não é baseada apenas no dance floor, na mitificação do DJ e afins. Sem desmerecer o espaço dos DJs, que são o coração do festival, com as batidas ritmadas de uma celebração. Enxergo a importância de tudo que envolve um evento deste porte, desde o segurança que fica na portaria horas a fio, a produção geral do evento e as equipes que montam o festival, como se fossem “vikings” se preparando para uma guerra, haahahahahaha!

Partindo deste princípio, lhes apresento “A espinha dorsal do Psytrance”, uma série de entrevistas sobre estrutura e montagem de festas e festivais de Psytrance BR, que pretende mostrar a caminhada de alguns profissionais brasileiros que vem fazendo a história da montagem ser atrelada a bioconstrução na prática, abrindo um importante espaço para o conceito de sustentabilidade através da capacitação profissional de suas equipes, na construção das maiores festas e festivais de Trance do Brasil.

Sejam bem vindos ao primeiro capítulo…

Natural de Ituberá (BA) – cidade da nave mãe Universo Paralello FestivalJovemario Conceição, mais conhecido como o graaaaaaaaande Jojoca, é a mente por trás do grupo Gênesis Bioconstrução, especializado no uso de materiais alternativos e renováveis para estrutura e montagem das principais festas e festivais de Psytrance no BR, como: Universo Paralello Festival, 303 Art Festival, Pulsar Festival, Soulvision Festival, Trancedence Festival, Xyryry Kuaray Festival, Hipnótica, Samsara Festival, Trance Formation Festival, Shivaneris Festival, Earthdance, Ohm Festival, Psycotrance, Festa da Vagalume, Flip Out, Music On, entre outros.

Atualmente morando em Brasília, este querido amigo bateu um papo comigo via zoom e a partir de agora, vocês terão a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre como funciona a engrenagem desta grande “espinha dorsal da psicodelia”, que é a base sólida de uma festa / festival de Trance.

Jojoca, como você deu início neste ramo de estrutura e montagem?

No ano de 2003, eu ainda morava na Bahia, e o Universo Paralello Festival tinha saído de Alto Paraíso (GO) e ido para a Bahia (Ituberá – Praia de Pratigi). Eles montaram o primeiro ano em Pratigi e as coisas não aconteceram como esperavam, então no ano seguinte eles já queriam mudanças. Com isso, começaram a andar na cidade de Ituberá a procura de pessoas especializadas na construção de casebres, estruturas rústicas e provisórias. Por coincidência eu já fazia isso há muito tempo, só não sabia que era bioconstrução, tss, tss. Daí eles me chamaram para fazer o segundo ano (2004-2005). Eu fiz, eles gostaram e foi assim que eu entrei no ramo de estrutura e montagem de festas e festivais, de vez. Estou no UP até hoje. São 18 anos nessa doação de amor às festas e festivais de Trance no BR.

E o grupo Gênesis Bioconstrução, quando surgiu?

Após um tempo de caminhada percebi que era necessário treinar algumas pessoas para ter mão de obra para atender mais eventos. Atualmente tenho 84 pessoas que estão à minha disposição, ou seja, prestadores de serviços / colaboradores que eu mesmo treinei para onde tivermos que ir montar. O grupo possui 12 anos.

No início, como era feita a estrutura e montagem do Universo Paralello Festival?

No início era muito simples: Tinha uma galera que fazia uma decoração básica e uma galera que fazia os palcos. Todo o restante era eu. Eu montava as pistas, as praças de alimentação, a feira mix, os campings, ou seja, montava tudo para um público médio de 5.000 pessoas. Atualmente montamos uma estrutura para a expectativa média de 25.000 pessoas, no mínimo, mas infelizmente ainda não atingimos este público. Nas duas últimas edições ficamos numa média de 22.000 pessoas, mas temos estrutura para atender 25.000.

Minha primeira experiência como público de festival foi a edição UP#09, em Pratigi, na cidade de Ituberá. Por conta de alguns problemas na época, o Universo teve que mudar de cidade e no ano seguinte (UP#10) o UP aconteceu uma única vez na Praia do Garcez, no município de Jaguaripe. Também  estive presente como público e me recordo dos diversos problemas com relação a estrutura deste local novo, principalmente com relação a hidráulica.

Com essa mudança repentina e inesperada para o Garcez, suponho que enfrentaram problemas que em Pratigi não existiam. Como foi isso, Jojoca?

Bom, muitas pessoas imaginam que festival de música eletrônica é uma arca de dinheiro, e na verdade Bianca, você sabe que não é, né? É um evento que se mantém com a venda de ingressos e qualquer erro é catastrófico.

O prefeito de Ituberá (Praia de Pratigi) na época exigiu muito além do nosso alcance e por este motivo decidimos sair, para mantermos a periodicidade anual do festival. A Praia do Garcez era um lugar com todas as características de Pratigi, por estar na mesma costa, etc, então apostamos. Para nossa surpresa, embaixo da camada de areia existia uma camada rígida de cascalho, o que impedia o acesso às duas primeiras etapas do lençol freático, que é de onde colhemos água de qualidade para o festival.

Com isso, tivemos que alugar piscinas de pesque e pague e criamos grandes piscinas para fornecermos água para o festival. Tínhamos armazenado cerca de 2 milhões de litros de água para o festival.

No primeiro dia de festival, alguns “pulantes” tentando entrar no evento, entraram na área exatamente onde passavam os tubos de irrigação. Quebraram os tubos de irrigação e com isso, as piscinas secaram. Por conta disso, alugamos uma pousada de imediato, que era próxima a portaria do festival, para termos as piscinas a nossa disposição. Entrávamos com um caminhão pipa, que despejava água na piscina da pousada. Com bomba e draga enchíamos as nossas caixas d’água. Tínhamos 15 caminhões pipa trabalhando 24h por dia!

Ao longo de todos esses anos (não falando apenas do Universo Paralello. Citei como referência por ser o maior que temos aqui no BR), quais foram as maiores dificuldades que você enfrentou atuando na estrutura e montagem do Trance?

Quando eu comecei, senti uma grande dificuldade profissional, digo, a mão de obra para este tipo de serviço era muito escassa. Tinham muitos aventureiros, mas ninguém que quisesse ser profissional. As pessoas queriam trabalhar em festivais com o foco de curtição e não pode ser assim, né? FESTIVAL É UM EVENTO SÉRIO! É um trabalho feito para receber pessoas, deve ser bem feito e no tempo certo. É muita seriedade envolvida.

Outra dificuldade é usar material alternativo em alguns festivais, pois em algumas regiões aqui do BR é proibido usar bambu, por exemplo. E para nós que somos bambuzeiros/bioconstrutores, é triste chegar numa região e por qualquer motivo uma autoridade fala: “bambu aqui eu não quero!”. Sem explicar, mesmo que estejamos com todas as normas, dentro das leis da utilização do bambu, mesmo sabendo que o bambu é renovável, que é tão ou até mais resistente que o aço. Enfim, mesmo com todas essas informações existem muitas pessoas que ainda não acreditam. Isso é lamentável!

Bom, pegando um gancho sobre essa questão que você citou, sobre a profissionalização no Trance, é algo que acompanhei quando dei início a minha caminhada profissional nos festivais. Naquela época, muitas pessoas envolvidas no “fazer acontecer o festival”, digo em todas as áreas, inclusive a minha, que é fotografia e produção audiovisual, enxergavam isso como um trabalho informal, a base de muita curtição e falta de disciplina, o que gerava uma falta de interesse pela capacitação profissional para fazer com excelência a função. Mas é interessante e incrível observar como isso vem mudando ao longo dos anos. AINDA BEM! Hoje vejo a maioria das equipes engajadas com um propósito de responsabilidade, se aprimorando nos estudos acerca de suas áreas.

De acordo com este fluxo positivo na caminhada, o que você espera do futuro da bioconstrução nas festas e festivais de Trance?

Penso que a cada dia iremos evoluir mais e que irão aparecer novos designers de bambu, arquitetos, engenheiros envolvidos nos projetos. A questão da segurança vai ser algo muito abrangente, pois temos uma relíquia de acidentes em festivais que não podem se repetir. As normas dos Bombeiros também, que ficam cada vez mais exigentes, o que é muito importante. Com isso, as equipes de montagem precisam se preparar para trabalhar. Ou você é profissional, ou vai ficar no passado.

Jojoca, qual a diferença entre montar uma festa e montar um festival?

Pelo fato de acontecer em apenas um dia, montar uma festa é mais simples, pois todas as estruturas são menores, ou seja, é uma administração básica, pois você se preocupa com apenas aquele dia. Numa festa as pessoas voltam para as suas casas e num festival as pessoas vão morar lá alguns dias e partindo deste princípio, temos que dar moradia e condição de moradia adequadas para as pessoas que vão ficar ali no campo.

E o que é uma moradia adequada num festival, para nós que somos mochileiros? É uma boa área de camping, sistema de água para banho e afins, saneamento básico para que o local não vire um lixão, gestão ambiental para recolhimento de todo lixo gerado durante o evento, fornecimento elétrico, pois uma boa iluminação no campo de um festival previne contra acidentes e roubos, ou seja, dar segurança. É pensar em tudo isso como se fosse uma pequena cidade provisória. Tudo num festival é multiplicado, pois você deve calcular quanto tempo vai poder ficar acordado, quantas pessoas vão poder substituir você, quantas pessoas vão fazer a gestão ambiental, quantas pessoas vão poder organizar a cidade onde ficam as barracas, quantas pessoas vão poder olhar o sistema elétrico e hidráulico, se o esgoto vai funcionar perfeitamente, se vai poluir ou não. Enfim, são várias questões que devemos levar em consideração quando se trata de um festival.

Quando você é contratado para fazer a estrutura e montagem de uma festa, então tudo isso que você citou na resposta acima é sua responsabilidade? 

Sim, tudo isso e mais algumas coisas, rs…

Num festival, citando o Universo Paralello, por exemplo, você também fica responsável por todas essas áreas?

Sim, toda a parte de gestão administrativa do Universo fica sob minha responsabilidade. Eu sou o primeiro a chegar na fazenda (em média 4 meses antes da data do festival). Eu recebo e preparo a fazenda para receber cada grupo de trabalhadores, para cada núcleo de construção.

Atualmente, o festival é dividido em 8 núcleos diferentes e eu sou responsável por fazer esses núcleos funcionarem. Além de ter que montar toda parte de infra estrutura de sanitários, duchas para banho, feiras, praças de alimentação, sistema elétrico, ou seja, montar tudo, controlar e ficar de olho o tempo todo.

Realmente é muita demanda de trabalho para montar um festival deste porte. Sem contar que sei bem que durante o evento “o bicho pega”, hahahahahahaha, e depois ainda tem a desmontagem.

Jojoca, quanto tempo você fica para desmontar o UP?

Depois que o festival finaliza, eu fico mais 30 dias para desmontar. Então, são em média 6 meses de campo, entre montagem e desmontagem do Universo Paralello.

E quanto tempo você leva para montar uma festa?

Se for uma festa em área urbana, em um clube, em 2 dias eu monto. Caso seja uma festa grande e mais afastada do centro urbano, eu levo em média de 15 a 20 dias para montar. Quando você monta fora da área urbana, você precisa criar todas as condições que já existem na área urbana.

Jojoca, você precisa de uma equipe com quantas pessoas para montar e desmontar?

Depende da estimativa de público. Se for uma festa para 1.000 pessoas, preciso de 5 pessoas para montar, pois o espaço físico que irei utilizar é muito pequeno. Se for o Universo Paralello, que são 5,5km de cidade, eu trabalho diretamente com 80/100 pessoas e durante o festival chegam mais 800 trabalhadores.

Desde a primeira edição que fui como público, até a última que fui trabalhando, percebi uma enorme evolução no que se refere a estrutura e montagem do Universo. Me conte um pouco sobre essa trajetória deste enorme festival.

Quando iniciamos a estrutura era muito simplória para atender um público que estava tentando conhecer o lugar. Com o passar dos anos, público e demanda aumentaram, gerando uma necessidade do festival em desenvolver uma forma mais prática e sustentável para atender este público. Fomos nos aprofundando, estudando e fazendo cada vez mais pesquisas e assim, caminhamos para o nível que acreditamos ser o melhor para a excelência.

Juarez e Dario são os pais do UP, eu e Chico os tios mais próximos, pois nós “demos a mão a criança”, para ela começar a andar também. Por ser assim, a gente encara o Universo como algo muito além do profissional envolvido, pois faz parte de nós.

Na verdade, eu sou assim em todos os festivais que eu monto, pois não estou ali apenas pelo profissional, tenho que ter amor. Sou contratado para fazer o festival acontecer, então é preciso ter doação, amor e muita entrega da minha parte. Além de muito profissionalismo, claro!

E nessa pandemia, como você “se virou” sem os eventos, meu amigo Jojoca?

Bom, eu trabalho 100% com os festivais. Eu faço os 8 maiores aqui do BR.

A pandemia foi uma surpresa, pois eu ainda estava na Bahia quando esse caos começou no mundo. Pela dificuldade de comunicação que rola no campo do Universo, eu acompanhei através de pequenos recortes o que estava acontecendo na China, em dezembro.

Quando o festival terminou (UP#15), fiquei até fevereiro de 2020 para desmontar e depois retornei para Brasília. Quando cheguei, já estava tudo fechado. Até as entradas da cidade já tinham barreiras. Olhei de um lado para o outro e pensei: “Nossa, o que eu vou fazer da minha vida? Bom, vou apertar as porteiras aqui para segurar!”

A grana que eu consegui fazer no Universo, como montador e com a minha pista (Pista Pirata), eu guardei. Só que eu tinha dois colaboradores que viviam comigo, ou seja, tinha que ter dinheiro para todos nós, pois estava todo mundo parado por conta da pandemia. Com isso, chegou um ponto que o dinheiro acabou e por eu ter vários produtores de festas e festivais que são meus amigos e se preocupam, para alguns deles eu consegui vender alguns serviços para serem prestados no futuro. Estou vendendo alguns serviços hoje, para executar quando abrirem as janelas dos festivais novamente.

É claro que não dá pra vender todos os serviços, pois preciso receber também quando o evento acontecer, então eu também comecei a fazer trabalhos de eletricista, pedreiro e encanador, que são serviços que eu já faço naturalmente. Desta forma eu venho conseguindo caminhar. É claro que “vão ficar algumas dívidas, mas quando chegar lá na frente eu vejo o que vou fazer. Temos que passar por isso!”

Como está a sua expectativa para quando os eventos voltarem?

Eu sou muito tranquilo, então não fico fazendo conjecturas de coisas que estão por vir. Imagino que assim que abrirem as janelas dos eventos, aqui em Brasília, por exemplo, vai estourar de festas. No Brasil inteiro vai todo mundo querer fazer festa na mesma hora e isso me preocupa, pois sendo feitas às pressas ficam sujeitas a acidentes, e que se divide muito o público, gerando prejuízo. Temos que ter o pé no chão com relação a isso.

O Universo, Pulsar, Samsara, Xyryry e o Hipnótica vão se dar bem em 2022, pois são eventos que acontecem em regiões distintas do Brasil. E pelo fato de acontecerem em datas diferentes, todos irão se dar bem.

Temos que nos atentar também que em 2022 teremos os maiores festivais da Europa, então vamos concorrer com eles, né? Temos que segurar o nosso público brasileiro!

Vamos sofrer a nível de volume de dinheiro, mas cabe aos produtores terem os pés no chão e produzirem festivais mais compactos, mais raiz, ou seja, produções mais baratas, embora bonitas. Vai dar certo!

Amei conversar com você, meu amigo. Te agradeço imensamente. Nos vemos logo menos meu querido! Muita saudade de você!

Eu agradeço demais o espaço, Bianca. Logo menos nos vemos para celebrar. Até breve!

“O bambu, em sua humildade, nos ensina a curvar-se diante da tormenta e erguer-se imponentemente ao chegar à calmaria.” 

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