ENTREVISTA | UM PAPO COM SENHORITA BIRA: uma entidade verdadeiramente humana, comunicativa e efetivamente igualitária

Essa entrevista é, também, um ponto de divisão do canal Papo de Trava. Minhas perspectivas eram concentradas em bolhas, em encaixotamentos (termo que já usei em algum de meus podcasts do Spotify), em traumas e dores sofridos por uma travesty preta, contudo não tinha um entendimento exato de como pensar fora de tal bolha, de tal encaixotamento. Uma amiga minha me apontou esse vídeo de um canal falando sobre essa pessoa que tinha um pensamento crítico incrível e fui ver.

O algoritmo da imagem é um canal do YouTube que eu, Kukua Dada, nunca vi igual na vida. Ele envolve propagação de conhecimento gratuito, algo muito difícil no capitalismo neocolonial pós-modernista atual; ele envolve teatralidade ficcional ao mesmo tempo que envolve utilização de persona (algo que difere de criação de personagem e falaremos, também, sobre isso); ele envolve críticas baseadas em fatos, não apenas em crenças ou teorias conspiracionais; ele envolve apelos sociais e políticos e é, de forma efetiva, um início de alvorada de mudança cis-temika.

Tudo isso pensado e criado por Senhorita Bira (@senhoritabira), uma entidade cismasculina de papel de gênero feminino que estuda Políticas Públicas na Faculdade Federal do ABC Paulista. Peço, antes de tudo, especificamente para VOCÊ, que criou, por quaisquer motivos emocionais e egóicos, frustrações para com o entrevistado, que as deixe para senti-las novamente após ler essa entrevista na íntegra.

Senhorita Bira, conversamos e você me confirmou que se identifica como um homem cis de papel de gênero feminino (além de cachorrinho de rua caramelo abandonado) e não apenas feminino, mas um papel de gênero de homem “travestido”. Isso traz, de certa forma, um desconforto a algumas pessoas transfemininas (me trouxe de certa forma, inclusive, quando ouvi pela primeira vez). Gostaria, por gentileza, que você comentasse sobre essa questão pessoal sua e, ao mesmo tempo, explicitasse a diferença entre persona e personagem para que quem nos lê consiga entender de fato.

As pessoas têm vivências, pensamentos e arcabouços teóricos diferentes. É bom ressaltar isso. Algumas pessoas se incomodaram com a minha identificação como “homem travestido”, porque têm um embasamento diferente do meu, sobretudo do viés do movimento T.

Eu acredito que a linguagem é viva e se modifica a todo momento. Não vejo nenhum demérito ou desrespeito em ser um homem travestido. É isso que eu sou. Se minha vivência e a minha identidade incomodam alguém, isso não é sobre mim. Eu não vou me anular, me adaptar ou me menosprezar para caber nas réguas e nas crenças de outrem. Aliás, isso é o que foi feito com pessoas trans durante nossa história recente: pedir para se encaixarem, para se subjugarem a um padrão cisgênero. Eu não sou uma mulher trans, eu não sou uma travesti, eu sou um homem. E, sendo homem, eu uso elementos da feminilidade. Ou seja, sou um homem travestido.

O Bira que está nos vídeos sou eu mesmo. Não é um personagem. “senhoritabira” era apenas o nome de usuário que escolhi no Instagram, porque “bira” já não estava mais disponível. As pessoas passaram a me chamar de Senhorita Bira e, por uso consagrado, ficou assim. Senhorita Bira e Bira são a mesma pessoa. Sou eu autenticamente.

Não é um personagem, porque não tem uma história fictícia. Podia ser tido como uma persona. Todos nós criamos uma persona para lidar com as diferentes áreas da vida. No entanto, gosto de pensar que não há grandes diferenças entre a pessoa dos vídeos e a pessoa do quotidiano.

Um personagem pode ser interpretado por qualquer pessoa. Uma persona não pertence a um sujeito específico.

Em seu primeiro vídeo, você nos coloca em evidência como peças de um tabuleiro, termo que você posteriormente usa primeiramente muitos vídeos após o primeiro, de forma estratégica, exatamente como você nos sugere que sejamos nesse jogo político chamado a vida. Por gentileza, nos explique o que é semiótica e seu processo de criação deste roteiro didático que me fez ficar de queixo caído.

Gosto realmente de pensar na vida como um tabuleiro. Estamos a todo momento nos articulando, jogando, blefando para uma finalidade. Um dos aspectos deste jogo da vida é a semiótica. A semiótica é o campo da filosofia que estuda o significado dos signos, da imagem. E, a partir dela, construí muitos pensamentos nos vídeos d’O Algoritmo da Imagem. Porém, trago elementos da sociologia e da filosofia também.

O meu canal nasce pela minha forte curiosidade em entender o mundo que me cerca: saber como se dão as relações entre as pessoas e o jogo de poder. Não consigo desvencilhar a construção do meu pensamento no canal com as vivências – das mais diversas – que tive durante minha jornada. Ali, não há apenas minhas pesquisas acadêmicas. Ali, há toda a gama de experiências que tive, as quais me construíram como sujeito pensante.

Em alguns vídeos seus do canal, você cita uma drag queen cisbranca do meio de Humanas que traz bastante informações e, nem sempre de forma tão popular como você. A pergunta é a seguinte: essa drag queen te motivou a criar o canal ou teve influência somatória de alguma forma na feitura do roteiro ou sequenciação dos temas de seus vídeos? 

A Rita Von Hunty foi, sem dúvidas, o motivo principal de eu fazer um canal. Ela me mostrou a importância de compartilhar conhecimento e, sobretudo, que havia demanda real para esse nicho. Sou muito grato ao corpo teórico oferecido por ela. E, sobretudo, pela motivação de me movimentar em direção à democratização do conhecimento.

Focando nos seus conhecimentos trazidos: um dos pontos que meus olhos mais atentos perceberam foi o ponto sobre falta de limites. Pelo o que eu entendi a única diferença de uma pessoa que não é serial killer para uma pessoa que é de verdade é a assunção moral e ética. OU EU ESTOU ERRADA?

É exatamente isso! Pelo viés de Hannah Arendt, todos nós somos capazes de cometer atrocidades – ou permitir que elas aconteçam. A obra de arte Ritmo 0, de Marina Abramovic, veio para explicitar isso. Pessoas comuns, sem tendências de sadismo importantes, foram capazes de torturar a artista apenas para ver sua (falta de) reação.

A burocracia estatal alemã foi conivente com o holocausto também. Ora, os funcionários das empresas de tecnologia sabiam o que significava cada um dos símbolos dos prisioneiros e, até mesmo, o destino ao qual estes seriam submetidos. Isso não foi o suficiente para deter os funcionários, exatamente pela ausência de pensamento e por estarem em uma estrutura burocrática capitalista. É aquilo “se eu não fizer, outro faz. E eu preciso desse emprego”.

Toda pessoa pública precisa de investidores, por mais talentosa que seja, ela precisa do QI (quem indica) e do capital do QI. Eu me formei no Ensino “Mérdio” num colégio chamado QI, aliás, mas voltando ao foco: você percebe o quanto seu conhecimento afeta feridas, traumas e desconfortos, portanto, traz possibilidade de processos efetivos de autoconhecimento em pessoas que você nunca viu pessoalmente? E tudo isso de forma atemporal?

É muito recente a minha descoberta sobre como minha voz impacta os meus seguidores. Confesso que dizia coisas sem pensar na repercussão. Eu, apenas, estava compartilhando minhas reflexões. Hoje, percebo que isso não é responsável, pois tenho uma voz pública – e ouvintes. Buscarei, a partir de agora, ter uma atitude mais consciente em relação às minhas falas. No entanto, não me censurarei. A minha intenção dizendo sobre a indústria da música foi, na verdade, de tirar um peso dos ombros dos artistas independentes que podem acreditar que sua falta de sucesso é algo individual. Não é. Estamos inseridos num sistema que é feito para que você perca. Há possibilidade de ascensão, é verdade, mas é muito custoso ascender. Assim, não é algo individual: é coletivo. 

Juro a você que nunca deixaria ninguém me chamar de Má/Mal, Feio/a/e ou Selvagem sem a pessoa tomar um coió meu ou ver minha cara de ira, mas quando você me trouxe tal perspectiva vinda de Fanon, eu não consegui discordar, fiquei passada com esse entendimento da marca de Cã. Por gentileza, comente resumidamente sobre esse vídeo e como foi sua ideia de organizá-lo num roteiro.

A MARCA DE CÃ é um vídeo do qual gosto muito. É uma aliança que fiz com a luta antirracista. Obviamente, é um tema caro para mim, pois já sofri grande parte das violências que o racismo intrincado na sociedade pode oferecer. 

É muito doloroso ser um corpo alheio e abjeto. E não somente: ser um corpo que não é passível de ser amado. Foi exatamente por essas vivências e inquietações que decidi compartilhar o viés de Fanon para os meus seguidores.

Eu fiz parte de um clube. Onde comecei a treinar Kung Fu e fui chamada por racismo e homofobia na época de Vera Verão pelo professor que me dava aula. Tijuca Tênis Clube. Nada comparado aos clubes do Rio de Janeiro os quais você falou sobre. Não era necessária a herança que importa para o ingresso e continuidade em tal clube. Pertencia à classe média média e classe média alta na época. Em seu vídeo Holofotação, você trouxe como perspectiva de efetividade política o ensino de defesa pessoal, não o compartilhamento de conteúdos de neonazistas, gente burra, besta ou gente que fala merda justamente para ser odiado. Meu sonho é ser professora de Kung Fu para existências femininas. Minha pergunta vem agora: como você chegou a esse ponto de perspectiva?

A meu ver, só é respeitado quem tem poder. E poder se defender efetivamente é uma forma de poder que qualquer um consegue ter. É importante que nós, corpos minorizados, saibamos nos defender numa sociedade que nos quer mortos. Ensinar Kung Fu para mulheres, como você quer, é importantíssimo. As mulheres são violentadas e abusadas dentro de suas casas e também nas ruas. É imperativo que essas pessoas sejam vistas como uma ameaça – e não mais como um alvo fácil. E isso se estende a toda a sorte de militantes esquerdistas.

Guerra Híbrida: um conceito que nunca tinha ouvido falar em aulas de História e Geografia na época de meu Ensino “Mérdio” no Colégio QI e que me abafou. Por gentileza, explique o significado desse termo e como afeta especificamente a quem lê essa entrevista.

O conceito de Guerra Híbrida remonta aos anos 90. De fato, não é um tema amplamente difundido e nem é consenso entre os pesquisadores. Exatamente por não ser conhecido que eu tive a intenção de divulgá-lo ao meu público. É importante que saibamos como a geopolítica está se dando no momento histórico no qual estamos. Todas as dinâmicas de poder usadas pelos Estados devem ser debatidas e vistas com cuidado. É sobre as nossas vidas que estamos falando.

A Guerra Híbrida é uma nova forma militar, em que as batalhas se dão no meio informacional. Agora, as operações não contarão com tanques de guerra e mísseis, mas, sim, com posts no Facebook, com operações psicológicas. Já é sabido que governos ao redor do mundo se utilizaram das redes sociais para tomar ou manter o poder. E as redes sociais são vistas como algo de importância menor quando estão norteando nossas existências, nossos anseios e nossa política.

Deixei a melhor pergunta para o final: Angela Natel é uma outra entidade revolucionária, como você, como foi esse contato de vocês e como os cursos de Angela te ajudaram com as dores e traumas do seu passado na Igreja Adventista?

A Angela Natel foi uma das maiores bênçãos que tive na minha curta trajetória na internet. É uma pessoa extremamente forte e corajosa que decidiu refazer sua vida para viver sua verdade. Isso é muito lindo. Além disso, é uma pesquisadora com muito conhecimento e didática. 

Ao ser submetido aos conhecimentos dela, consegui realmente me desvencilhar da interpretação bíblica oferecida a mim pela Igreja Adventista do Sétimo Dia. Agora, estou num viés mais científico da exegese, graças à voz de Angela Natel. E não poderia agradecer mais. Indico veementemente seus cursos.

Eu, Kukua Dada, quero reforçar que todo o conhecimento analisado cientificamente e proposto de forma efetivamente democrática é o melhor tipo de conhecimento, porque não se baseia em achismos, burocracias pobremente fundamentadas ou entendimentos religiosos deturpados de quaisquer religiões que sejam. Seu canal é um túnel de saída de uma posição isolativa e egocêntrica de “bolha” ou encaixamentos social para uma autocompreensão do que é ser um cidadão e, a partir daí, entendimento de lugar não de forma hierárquico-capitalista, mas de forma humanitária. Muito obrigada, Bira por se dispor a tudo isso. Por aceitar participar dessa entrevista e por abrir meus olhos de forma efetiva.

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KUKUA DADA

Editora Chefe, Colunista e Repórter

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