ENTREVISTA | A Arte de decodificar a música em visuais

VJ (Vídeo – Jockey) é o profissional que realiza a projeção de imagens em eventos como raves, shows, festas em clubs e em diversos tipos de encontros culturais. É uma forma de arte que vem ganhando protagonismo nos eventos, transformando ritmos musicais em visuais para o público, proporcionando uma experiência no mínimo gratificante.

“Poder criar a oportunidade de pessoas das mais diferentes origens dividirem uma mesma pista e criar uma memória positiva juntos é algo que pode curar muitas feridas sociais.” – VJ NÃO CONSTA.

Pedro Brandão é o nome por trás do projeto VJ NÃO CONSTA, um artista que vem fazendo um trabalho interessantíssimo unindo música e artes visuais. Batemos um papo com ele sobre seus projetos, que além do Vídeo Jockey também envolve a produção de uma festa de techno, a Peixe Eletrostésico. Confira agora!

Como surgiu o seu interesse pela arte visual?

É impossível falar do meu amor pelos visuais e pela arte de ser VJ sem antes falar do amor que tenho pela música. Foi por causa dela que descobri o que é estar no meio de uma pista repleta de pessoas compartilhando uma experiência. A primeira arte que pratiquei e que me levou para esse caminho foi a de ser baterista. É algo que está enraizado em mim de tal modo que quem me vê videotecando repara que estou sempre contando o compasso da música, batucando na mesa ou até mesmo a forma que opero a controladora MIDI.

Criar os visuais foi a linguagem que me fez mais livre para criar, junto com os demais artistas que compõem um evento, emoções verdadeiras para o público. Eu valorizo muito o improviso durante as minhas lives de VJ, pois sempre existe uma tensão rolando sobre o que eu posso fazer em seguida e acabo muitas vezes me surpreendendo com os resultados. Isso é fundamental para ser VJ, pois muitas vezes só recebemos um briefing do conceito da festa e a lista dos DJs que vão se apresentar, não existe um roteiro definido para o que vai acontecer durante as 8 horas de festa.

Amostra Hyglu Motivacion. Foto:

Você também cria o conteúdo que reproduz? Como é o processo de criação?

Algo que sempre busco trazer nos eventos em quais sou VJ residente é apresentar um novo tema em cada edição, para que o público tenha sempre uma experiência nova. Isso envolve todo um processo de refinar a minha pesquisa sobre a cultura de cada festa, buscar referências não só de outras festas, mas também de outras produções artísticas que estão alinhadas com a cultura do evento.

Antes da pandemia eu trabalhava em algumas casas de eventos de São Paulo, fazendo até três festas por semana com temáticas totalmente variadas. Festas de brasilidade, música regional, downtempo, techno, psytrance, hip-hop, retro anos 70, 80, 90, 00… Cada uma com uma identidade visual e cultural distinta. Boa parte do meu set é produção autoral, mas é impossível conseguir abranger tudo o que quero

apresentar usando só essa abordagem. Garimpar conteúdos pela internet e trocar material com outros VJs é fundamental para conseguir renovar os meus sets.

Fale um pouco sobre o seu trabalho com produção de vídeo clipes.

Foi durante a pandemia que criei o meu primeiro clipe intitulado “Motivación”, para os meus amigos do grupo Hyglu e que acabou sendo premiado pelo edital RespirArte. Essa experiência de criar os visuais para um clipe, com apenas 5 minutos de duração ou até menos, foi algo muito novo para mim que estava acostumado a criar narrativas de 8 horas. A preocupação com os detalhes e de criar uma história totalmente inédita foi algo que me desafiou em relação à qualidade da minha produção. Antes o foco era criar pacotes de vídeo loops que pudessem

ser mixados ao vivo e que não precisavam ter uma narrativa fechada, pois o importante era ter a flexibilidade de se encaixarem em diversas músicas.

Depois dessa primeira produção tive o prazer de trabalhar junto com o grupo de DJs da Audax e criamos três obras para as músicas “Made to Fade”, “BUMP” e “Sweet Emotion”. Essa experiência foi ótima para poder botar em prática toda a minha bagagem de VJ em eventos junto com os meus estudos de produção 3D, que foi fundamental para conseguir criar narrativas completas com material totalmente autoral.

O meu trabalho mais recente foi a collab com o mestre dos visuais, Felipe Krust, que me convidou para produzirmos juntos o clipe “Feel Only Love”, do Mister Ruiz e Klaas. Foi incrível ter a oportunidade de trabalhar ao lado do Krust, pegar o seu roteiro e criar todas as cenas que ele imaginou. Ver o resultado final, depois que ele fez a pós-produção do clipe foi extremamente gratificante e me mostrou como é fundamental a colaboração entre artistas para chegar em outro nível de produção.

Você produz uma festa, a “Peixe Eletrostésico”, onde você fica ao lado do DJ videotecando ao vivo. Como surgiu a idéia de fazer essa festa?

Eu tenho um grande fascínio por música eletrônica experimental, que vai além das sonoridades que encontramos nas pistas. Noise e Drone Music são duas vertentes que possuem uma base conceitual sobre o que é a música e sobre a relação do músico com seus equipamentos digitais/analógicos, que me fez ter interesse em produzir um encontro para explorar essas sonoridades. Por esse motivo a primeira edição da Peixe foi no formato de encontro audiovisual: tivemos os shows do

músico Mai_Rem, o grupo BadMantra e da banda Monstro Extraordinário junto com os VJs Pedro Yamada, Guilherme Pinkalsky e Danilo Oliveira.

O processo para transformar a Peixe em uma festa foi muito natural, na primeira edição pudemos convidar o Mai_Rem e o BadMantra para se apresentarem mais uma vez e chamar o Sumof para fechar o line-up. Foi uma ótima estréia para a Peixe e tivemos a sorte de conhecer dois dos DJs que viriam a se tornar residentes, a Brukner e o User. Desde então a Peixe realizou quatro edições e pudemos deixar a festa cada vez mais completa, abrindo espaço para que outras pessoas pudessem expor os seus trabalhos além dos DJs e VJs, como tatuadores, brechós e artistas independentes.

Como VJ, a Peixe foi a oportunidade que tive para poder montar apresentações com temas mais alinhados com o meu gosto pessoal, então não é ao acaso que eu tenho um carinho enorme por esse projeto. Muitas vezes as festas já possuem o seu staff artístico fechado, algo que eu entendo ser natural mas ao mesmo tempo se torna difícil para novos artistas encontrarem oportunidades.

Como está sendo liderar esse projeto?

Produzir uma festa independente que nem a Peixe não é fácil mas ao mesmo tempo é algo que não consigo imaginar deixando de fazer. Realizar uma festa é criar um espaço cultural e de encontro para as pessoas e acredito ser fundamental em qualquer evento prezar pela diversidade, não só do seu line-up mas também do seu público. Poder criar a oportunidade de pessoas das mais diferentes origens dividirem uma mesma pista e criar uma memória positiva juntos é algo que pode curar muitas feridas sociais. Por esse motivo a Peixe possui o acesso livre para pessoas trans, cadeirantes e portadores de deficiência auditiva ou visual. Foi uma maneira para deixarmos mais acessível o evento para alguns grupos da sociedade que muitas vezes não se vêem contemplados nas festas.

Durante a pandemia conseguimos realizar a Peixe no formato virtual de uma Zoom Party e também lançamos o projeto Palco Eletrostésico, que vai na linha das produções de palcos virtuais que nem os festivais Awakenings e Tomorrowland produziram. Isso só foi possível porque os artistas se apoiaram muito nessa pandemia para não deixarmos de fazer aquilo que mais amamos. Sou muito grato aos DJs parceiros que toparam participar dessas edições e também ao pessoal da Sinkro que mantiveram o estúdio aberto para realizar inúmeras lives. Foi uma forma de seguir com o projeto, mas a grande vontade é a de voltarmos com as festas presenciais.

Como a pandemia afetou a tua arte?

O meu trabalho era praticamente todo voltado para eventos e do dia para noite tudo parou. Até por coincidência a última festa que me apresentei foi a Peixe, que aconteceu no começo de março, duas semanas antes do estado de São Paulo declarar estado de calamidade pública por conta da Covid-19. Assim como eu, muitos artistas tinham as suas vidas muito atreladas com as festas.

Algo que me ajudou a suportar os primeiros meses da pandemia foi me dedicar a estudar mais sobre animação e produção de conteúdo virtual, até para poder tirar a cabeça de toda a tragédia que acompanhamos todos os dias. Quem não passou por nenhum momento de colapso mental durante a pandemia provavelmente não estava morando no Brasil. Foi justamente nesse período que acabei me conectando com novas pessoas e também resgatando muitos amigues da vida que, pelo corre que era antes da pandemia, não tínhamos tempo para poder parar e conversar, mesmo que pelas redes. Parece que surgiu um momento de pausa coletiva e as pessoas começaram a olhar mais ao seu entorno, fora de suas bolhas, e verem que existem muitos outros artistas fodas fazendo coisas incríveis.

Foi no final de março que comecei a fazer as minhas primeiras lives da maneira mais tosca imaginável, mas foram super divertidas. Cheguei a fazer um post no meu feed abrindo o convite para ver quem mais gostaria de dividir a live do Instagram e foi uma surpresa ver como as pessoas super toparam a ideia. Vários amigues DJs, VJs e músicos toparam, até artista de Barcelona entrou nessa bagunça. Uma amiga que nunca tinha trabalhado junto e que começamos a fazer lives uma atrás da outra foi a Kamie Jannuzzi. Outra foi a Ligia Alonso, que já tinha trabalhado junto algumas vezes, mas sem dúvida foi na pandemia que mais nos aproximamos. 

Sou muito grato a todes que compartilhei alguma experiência durante a pandemia. Ao pessoal da Sinkro que abriu as portas para poder somar nas lives de quinta-feira, aos produtores de outras festas de techno, como a Nikkatze e o Regis Lopes, por não só toparem participar da Peixe virtual mas também abrirem espaço para me apresentar nas suas produções. O que não faltou foi encontrar VJs para trocar ideias sobre os nossos perrengues e nos ajudar a resolver as buchas. Esse tempo de pandemia foi difícil, mas teria sido ainda pior se não tivesse surgido essas pessoas ao longo dela para nos fortalecer. 

Festa Alt-Hop. Foto: Marcos Bacon.

E na música, quais são suas influências, o que gosta de ouvir?

Durante a pandemia eu acabei assistindo a muitos shows pela internet, enquanto aprofundava os meus estudos com produção digital e tive sorte em conhecer o trabalho de muita gente incrível. Uma das apresentações que sem dúvida me marcou, não só pela música, mas também pelos visuais, foi do I Hate Models, junto com o FEMUR. Um show de quatro horas de duração simplesmente impecável no começo da pandemia, onde era claro que muitos de nós estávamos explorando novas linguagens para as apresentações.

Outra artista que conheci nesse período foi a Sanni Est, pelo canal de Youtube da HÖR BERLIN, e fiquei simplesmente apaixonado pelo seu set de tal forma que precisei saber mais sobre a sua carreira. Imagina a minha surpresa quando descobri que ela é uma pernambucana morando em Berlim e que produz as próprias músicas? Sem dúvida uma daquelas artistas nacionais que precisamos aprender a valorizar mais e enaltecer sempre.

Outros dois artistas nacionais que são muita referência para mim e que sempre acompanho, são o Craca e o Retrigger. A primeira vez que assisti a um show deles foi em 2019, no lançamento do disco “O Fim do Mundo É o Nome da Mulher Que Eu Amo”, do Retrigger com show de abertura do Craca na Madre Superioca. Sem dúvida uma noite impossível de esquecer. Craca é um artista que trabalha o audiovisual com muita maestria, operando os visuais de sua apresentação junto com o live musical maravilhoso. As apresentações do Retrigger são sempre divertidas, uma mistura de vários timbres que parecem terem vindo de um Atari e sempre trazendo o seu theremin flamejante.

“Ser artista é sobre criatividade e expressão, é assim que o público vai se identificar com a sua obra.” – VJ NÃO CONSTA

Cat Dealers - SP/2020. Foto: Pedro Brandão.
Cat Dealers - SP/2020. Foto: Wes Allen.

Você tem alguma dica para quem quer começar a atuar como VJ?

Ser VJ é trabalhar com arte e tecnologia, então é importante procurar ter um notebook com uma placa de vídeo e ter algum software que permita fazer mixagem ao vivo. Porém não acredito que para ser um bom VJ você tenha que ter os softwares mais caros ou o PC mais parrudo do mercado, porque no final as pessoas vão apreciar a tua obra e não o teu equipamento. Ser artista é sobre criatividade e expressão, é assim que o público vai se identificar com a sua obra. Claro, com o tempo você vai começar a entender quais são as limitações do teu setup e qual o investimento que vai te ajudar a evoluir nessa jornada.

Não se limitar em apenas estudar produção de conteúdo digital, mas também buscar referências fora desse meio é uma ótima forma para criar uma identidade e trazer algo de novo para tua arte. Muitas vezes o processo de criação está vinculado em como decodificar outras expressões artísticas, como dança e cultura popular, em uma apresentação de vídeo.

Algo que me ajudou bastante no começo foi adquirir um projetor de 2.000 lumens para poder praticar em casa e até mesmo levar em algumas casas de eventos para fazer alguma intervenção. Mesmo que no começo não apareçam trabalhos que sejam super bem remunerados é importante aproveitar essas oportunidades como laboratórios para entender como é estar fazendo parte do elenco de um evento ou alguma outra forma de produção cultural.

Quem tiver interesse em saber mais sobre ser VJ e quiser entender mais dos equipamentos que usamos, os softwares e todo o processo de criação de conteúdo pode me procurar no Instagram @vjnaoconsta, para tirar alguma dúvida ou até marcar uma aula para podermos ir a fundo nesse estudo.

Foto de capa: Marcos Bacon.

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