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ENTREVISTA / “Um desabrochar de Flores que dançam como as Estrelas”

Bom dia, boa tarde, boa noite linda plateia! Ça va? (Estão bem?). A intenção de um desabrochar relembra não apenas um arquétipo virginiano astrológico, no qual o momento de tal sabedoria arquetípica seria o evento que envolve os processos de tal desabrochamento, mas como também o Selo Galáctico da Semente, o quarto Selo da Cosmologia Maya, cujo foco é trazer à naturalidade nossa vivência de tempo.

A Revista Colors apresenta nesta primeira edição de entrevistas mediadas por Kukua Dada, a multifacetada Flores Astrais. Travesty, umbandista, produtora, atriz, e não menos importante, bruxa. E toda bruxa (mulher independente e ligada à Natureza) que se preze busca sempre formas de se desabrochar, para alcançar uma contínua sincronicidade e evolução própria de forma natural. Tal artista Flores não fica para trás nessa máxima.

Nesta primogênita entrevista, você, leitor, entenderá como foi essa criação desse buquê ambulante que é essa artista e pessoa chamada Flores Astrais, além da sua evolução, participação em projetos em diversos patamares e sua relação familiar. Confira agora mesmo.

(Sobre quem são As Astrais) Flores Astrais, amiga. Vamos começar do começo: seu nome e como ele te representa. No vídeo que você estrela, Fora do Eixo, você menciona de forma resumida sua identidade, mas a Colors e eu queremos saber um pouco mais.

Meu nome vem de uma música que é um dos clássicos da MPB, que foi eternizada na voz de Ney Matogrosso, com os Secos & Molhados – isso já diz muito sobre mim. Eu cresci com pais muito musicais, cercada de vinis (a grande maioria de MPB) e isso moldou muito de quem eu sou. Gosto muito do meu nome por toda a brasilidade que carrega. Pra além disso, flor é o órgão genital/sexual das plantas, eu sou cheia dessa energia sexual, não na simples leitura da promiscuidades, mas pelo mistério da vida que o sexo carrega; pela troca, sexo é transa, transar é trocar, é se expandir e eu sou uma pessoa expansiva por natureza.

Junto disso vem o Astral, que traz uma dimensão espiritual da coisa, a noção de que a vida é bem mais ampla do que essa realidade terráqueo limitada, e de fato eu sou uma pessoa espiritualizada nesse sentido. Mas uma das coisas que mais me toca nesse nome é ele ser no plural, floreS, como um jardim de possibilidades, que me faz lembrar que eu sempre vou ter escolhas, que não preciso me limitar a uma única condição. Assim como meu nome, eu sou plural, eu sou muitas e sou todas.

(Agora, vamos abrir um pouco esse buquê de Flores e entender sua carreira artística) Como ela teve início? Como ela se estendeu até hoje? Quais multi-talentos artísticos você agrega?

Eu sempre tive uma certeza: ser artista! Sempre com muita influência dos meus pais, que também viram essa potência em mim e me incentivaram (inclusive minha mãe foi atriz da cena de teatro amador contemporâneo de Belém na década de 80). Eu desenho desde que me entendo por gente, mas considero que comecei a arte pelo teatro aos 9 anos com um grupo na escola. Dali, já sabia que queria continuar por esse caminho, seguir nessa paixão. 

Cursei técnico em atriz e licenciatura em teatro, trabalhei 4 anos numa companhia que foi a minha maior escola de artes, contudo com a transição de gênero, a linguagem do teatro já não me abarcava mais como artista. Em paralelo a essa formação teatral, eu comecei a frequentar a cena alternativa de Belém, onde artistas de diversas linguagens movimentavam as noites sempre com muita irreverência e desbunde. Foi nessa bacia hidrográfica da arte contemporânea marginal de Belém que eu comecei a desenvolver meu trabalho em performance. Foi aí que comecei a assinar minhas produções como Flores Astrais (antes mesmo de transicionar socialmente). 

Essa cena da performance foi um caminho de mergulho em mim mesma, de conhecer meus limites, meus improváveis e o que já não me cabia mais. Quando saí do teatro essa cena noturna da performance já estava se organizando como algo maior, o que hoje nomeamos de Movimento das Themônias, um movimento artístico de vanguarda de multilinguagens que eu, junto de muitas outras pessoas da arte paraense, ajudei a levantar organizando convenções e escrevendo o manifesto do movimento. 

Tem uma pessoa que foi e é importante pra mim nessa trajetória que é Paulo Evander, um grande artista e companheiro que a vida me cruzou. Com ele mergulhei no audiovisual e desenvolvi minha estética no desenho, com ele aprendi a pintar, com ele muita coisa aconteceu, minha pesquisa em música se aprofundou e meus desejos de produzir foram fomentados. Paulinho me ensinou e ainda me ensina muito de produção artística.

A partir dessas três bases artísticas (Teatro, Themônias e Paulo Evander), eu me estruturei para fazer o que eu faço hoje, onde atuo como produtora cultural, dando conta das minhas próprias produções e de outros artistas da cidade. Em 2020, eu tive o prazer de trabalhar com a minha maior paixão entre todas as artes: a música. 

Comecei produzindo uma live para o BorBlue (poeta de rua, cantor e compositor de Icoaraci) e vi ali uma oportunidade de entrar nesse mundo musical que eu tanto amo. Desde então venho produzindo o BorBlue e assinei a produção musical do primeiro disco dele, tendo a oportunidade de construir as faixas junto dele e um grupo de 4 outros excelentes musicistas; e ainda gravei o coro do álbum que está previsto pra ser lançado no final do ano. 

Atualmente lancei minha primeira direção no audiovisual, no documentário Corpo Transversa, que apresenta as vivências de Mãe Rosa, travesti mãe-de-santo do Templo de Rainha Bárbara Soeira e Toy Azaká, e na sequência o lançamento de “Eu Sou Flor” de Flor de Mururé, minha segunda direção.

Créditos das fotos: Kazu

(Sem fazer a maluca) Sem perder muito o foco, produção musical, um de seus multitalentos: quais foram especificamente os projetos já produzidos por tais Flores? Você teve trabalho de produção também no clipe “Fora do Eixo”?

Fora do Eixo foi minha 8ª participação em clipes musicais daqui de Belém. Aliás, fiquei completamente encantada com o resultado do material e com toda a construção junto da produção para esse resultado. Minha atuação na performance sempre teve a música como uma base muito forte, creio que por isso a galera começou a me chamar pra isso também. 

Sempre tive uma convivência próxima com a galera da música na cidade, sempre tem um amigo para vir tocar um violão, cantar e ouvir um som; essa convivência me ensinou muita coisa, trabalhou meu ouvido, minha voz inclusive… Eu tive dimensão disso durante a construção do disco do BorBlue, ali minha veia musical explodiu, todas as pessoas que estão nesse trabalho construíram esse álbum, então eu também escuto da minha sonoridade neste trabalho que vai ser lançado (inclusive minha voz cantando no coro). Estou estruturando o lançamento desse álbum, com o show de estreia do trabalho e já venho articulando com meus amados irmãos da música projetos novos para 2022.

Essas pessoas da música que eu venho trabalhando junto, meus irmãos-de-santo inclusive, BorBlue, Flor de Mururé e Íris da Selva tem sido uma troca íntima e intensa, estou mergulhando na música guiada por outras pessoas trans que eu amo, admiro tanto e são especiais para mim.

(Oxi, vamos perder o foco, sim, que eu sou aleatória) E no amor? Quantos bofes? São cis? São trans? Como é que funciona o afeto nesse jardim de Flores que é sua existência?

Ah o amor… Eu sou muito amante, sempre gostei de ser amante e amada, inclusive esse foi o primeiro grande impacto depois da transição, quando eu vi que eu já não era mais vista da mesma forma em relação a esse olhar sensível do afeto amoroso. Eu costumo depositar afeto e amor nas mais diversas relações, sejam elas sexuais ou sociais. 

Quanto a minha sexualidade eu sou bissexual, mas isso foi um caminho pra poder entender e respeitar o meu próprio desejo. Quando eu comecei a entender minha sexualidade e comecei a afirmar que era bissexual ainda com uns 15/16 anos, isso não foi levado muito a sério (até mesmo por mim), pois antes da minha transição social de gênero eu me entendia como uma bicha, e essa performance social do masculino afeminado não é levada a sério socialmente, quando manifesta seu desejo por corpos femininos. Isso me deixou muito insegura sobre o meu desejo de me relacionar com corpos femininos, eu não tinha coragem nem de chegar nas meninas, então reprimi isso e achei que me identificava como um homem gay. 

Quando as questões de gênero afloraram na minha mente, tudo isso se transformou, eu mergulhei fundo dentro de mim pra entender quem eu sou, encarei os meus desejos de frente pra isso, e depois que passei a me entender com esse corpo transfeminino, passei a ter mais autoestima e segurança para respeitar e me divertir com a forma que eu desejo me relacionar afetiva e sexualmente. 

Depois da transição passei a me relacionar com outras pessoas trans, que foi uma libertação na minha vida inclusive, quebrar com o condicionamento cisgênero do desejo. Hoje, eu namoro com um homem trans há 2 anos, temos nossos bons acordos na nossa relação que ainda me permitem expandir o afeto e amor das diversas formas que eu acredito que é amar, sobretudo o transafeto, no qual eu acredito em toda sua potência curativa em todos os âmbitos, sexuais ou somente afetivos, pois nas minhas vivências trocar amor e afeto entre pessoas trans é muito mais fluído e frutífero… E isso não significa que não tenham todas as questões de atritos e deslizes que existem em todo tipo de relação humana.

Créditos das fotos: Kazu.

(Voltando à normalidade) Voltando para questões que se não a Colors se reta comigo, os projetos a seguir? Sei que traz ajé (má sorte) falar antes da completitude de um projeto, mas a curiosidade é: está seguindo um ramo musical as ideias ou não, está diversificado?

Cada vez mais a música vem tomando conta da minha mente e das minhas produções, tem projetos de música já articulados por aqui, mês passado inclusive fiz minha primeira apresentação pública de voz e violão no palco aberto do Show da Ayaní (musa travesti cantora de Barcarena), pela Endoida Produções. Violão eu aprendi sozinha, é uma paixão e um desafio para mim. De tudo que estou articulando na música, o que posso divulgar é o lançamento do álbum PoeZé do BorBlue, que inclusive estarei cantando com ele nos palcos no show de lançamento do trabalho.

E o documentário sobre sua mãe de santo, mulher, me conta como foi para você produzir isso? A Colors quer saber dos sentimentos, percepções e realizações!

Esse projeto foi uma benção que recebi da própria Rosinha Malandra (entidade guia de Mãe Rosa de Luyara). O projeto teve como base o estudo de doutorado de Aninha Moraes, que desde o mestrado já vem registrando os saberes da vivência de Mãe Rosa e desenvolvendo poéticas artísticas a partir desse estudo. O recurso para realização foi captado pela Lei Aldir Blanc em um trabalho conjunto da Aninha Morais, de Paulo Evander, Otavia Feio e eu

Recebi de presente da Malandra a incumbência de dirigir esse projeto, o que já era um desejo imenso meu assumir uma direção no audiovisual. Tive o apoio de uma equipe que eu já trabalhei em outros projetos e que me deram muito suporte. Tudo fluiu com muito amor, com o amor que eu tenho pela arte, amor que eu tenho pelo cinema, pelo axé e pela família de santo que me acolheu. Ao finalizar e editar esse material, me dei conta da potência do que tínhamos em mãos, um registro histórico de uma travesti que enfrentou muita coisa para assumir o cargo de mãe-de-santo e abrir sua casa de axé. Pra mim isso é uma conquista coletiva, é das travestis, é do povo de axé, é da malandragem!

Créditos das fotos: Kazu.

(Dando aquele laço nesse buquê) Para finalizar, uma pegada nesse buquê de Flores numa perspectiva mais emotiva: relação com os pais consanguíneos. Como foi e está sendo atualmente?

É uma relação forte e sempre muito presente. Eles foram as primeiras pessoas a acreditar nos meus talentos e investir neles, isso tem uma importância muito grande.

Eu me afastei muito durante boa parte do meu período de transição, mas chegou o tempo de me reconectar com eles. Tive muitos atritos, desconfortos mentais e outras barreiras nessa reconexão, mas foram enfrentados, mastigados, engolidos, vomitados e seguem seu curso em caminhos muito mais afetuosos e saudáveis.

Devo aos meus pais uns 70% da minha carga cultural (principalmente musical); são pessoas fantásticas. Minha mãe é paraense nascida em Belém no Guamá (o bairro mais populoso da cidade), filha dos interiores paraenses e meu pai é um mineiro da cidade de Timóteo que mora há uns 40 anos no Pará, eles se conheceram e se apaixonaram, o famoso amor à primeira vista. Eu nasci em Belém, mas com 1 ano de idade fomos para Barcarena e lá fui criada junto de uma irmã e um irmão mais velhos. Meus pais moram na casa que me criaram em Barcarena até hoje.

Créditos: Estúdio Tereza e Aryanne.

Créditos Capa: Paulo Evander.

Conheça as outras obras de Flores Astrais! https://prosas.com.br/empreendedores/34876

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