COLUNA | Vamos conversar sobre linguagem neutra? (Parte II)

A conversa é longa, como eu disse na coluna anterior (Vamos conversar sobre linguagem neutra? Parte I), que, aliás, vale a leitura para você poder acompanhar o sentido que eu estou dando a esta série. Deixa eu retomar o fio da meada para você compreender melhor o contexto. Eu resolvi propor esta conversa sobre linguagem neutra, pois me deparei com uma publicação compartilhada no Facebook, de um texto de uma professora de português falando sobre a linguagem neutra, então, depois de lê-lo, decidi me posicionar.

Quero lembrar que esta coluna-resposta está sendo dividida em partes, porque o tema é complexo e não quero tratá-lo de forma superficial.

Na parte I, eu abordei dois tópicos fundamentais: identidade docente e educação linguística na educação básica. Eu comecei com filosofia da educação justamente para que no final da série você compreenda como podemos tratar esta problemática.

A partir de agora, vou abordar diretamente o tema linguagem neutra. Nesta parte, eu começo a tratar sobre aspectos mais relacionados a linguística, vou continuar usando a dialogação escrita como recurso didático, com a finalidade de me fazer o mais claro possível. De antemão, já anuncio que faço uso do discurso de autoridades acadêmicas especialistas no tema em questão. Quero reiterar que a ideia é lançar luz sobre o tema e de modo algum propor normatizações, até porque a língua(gem) é dinâmica.

Bom, dito tudo isso, continuo, então, com a dialogação escrita com o texto original da professora. Vou marcar o texto dela em colorido e entre aspas, e o meu comentário em fonte normal.

O texto dela começa assim:

“Vamos conversar com a tia.

Não sou homofóbica, transfóbica, gordofóbica, nãobinariofóbica e o kralho a 4 que queiram inventar de fobias aí. Eu sou professora de português. Eu estava explicando um conceito de português e fui chamada de desrespeitosa por isso (ué).

Eu estava explicando porque não faz diferença nenhuma mudar a vogal temática de substantivos e adjetivos pra ser ‘neutre’.”

A primeira coisa que me vem à cabeça quando leio esta frase é o tamanho do esforço que uma professora faz para deslegitimar uma causa social que não é a sua, e também me questiono por qual motivo esta pessoa se empenha tanto para isso. Em segundo, apesar de sua afirmação ter base, ela faz uma abordagem superficial e tendenciosa, claramente, para fundamentar o seu posicionamento ideológico. Não acho honesto e muito menos responsável esta atitude! Vou explicar melhor ao longo do texto.

Ela continua…

“Em português, a vogal temática na maioria das vezes não define gênero. Gênero é definido pelo artigo que acompanha a palavra. Vou mostrar pra vocês:

O motorista. Termina em A e não é feminino.

O poeta. Termina em A e não é feminino.

A ação, depressão, impressão, ficção. Todas as palavras que terminam em ção são femininas, embora terminem com O.

Boa parte dos adjetivos da língua portuguesa podem ser tanto masculinos quanto femininos, independentemente da letra final: feliz, triste, alerta, inteligente, emocionante, livre, doente, especial, sedutor, agradável, etc.”

De fato, a vogal temática não define gênero nas palavras, sua função é ligar o radical das palavras às desinências (radical + vogal temática = tema). A marca de gênero aparece de diferentes formas na língua portuguesa, uma delas é no emprego do artigo que acompanha o nome (substantivo), como também pelo emprego de desinências de gênero e pronomes. Só que não é apenas isso. Temos que levar em conta que alguns fatos, algumas coisas, situações, profissões foram se alterando, se reconstituindo, ganhando novos sentidos ao longo dos anos e as palavras podem e devem acompanhar essa transformação. Vou usar o exemplo que ela trouxe:

O motorista.

O substantivo serve para nominar algo que existe no mundo – neste caso, especificamente, 

uma profissão que surgiu por conta da necessidade de guiar veículos de um canto para o outro. No entanto, desde o surgimento dessa profissão até meados do século passado, as mulheres eram proibidas de dirigir (aliás, existiam países que em até 2018 não permitiam que elas dirigissem). Veja bem, se não tem mulheres guiando, não há motivo para existir uma palavra no feminino para identificar uma mulher motorista. Lembrando que o A de motorista é vogal temática e não desinência de gênero, então, a palavra motorista não é do gênero masculino, porém, como por muitos anos só havia homens dirigindo, ela foi usada para se referir a homens – só recentemente, que fazemos a distinção de gênero, usando para isso os artigos A ou O. A mesma coisa ou processos semelhantes acontecem com outras palavras e com a palavra poeta. Ou seja, o sentido está no contexto social e o contexto no caso é androcêntrico, desconsiderando em muitas circunstâncias qualquer outro gênero. Aqui fica evidente a relação de hegemonia e opressão.

Bom, vamos mais à frente para depois eu retomar essa ideia. A professora no seu texto prossegue:

“Terminar uma palavra com E não faz com que ela seja neutra.

A alface. Termina em E e é feminino.

O elefante. Termina em E e é masculino.”

Calma, leitor, este trecho aqui vai precisar de um pouco mais da tua atenção. Olha só, Camara Jr., um linguísta muito importante para a ciência da linguagem no Brasil, já havia dito que “a flexão de gênero é exposta de uma maneira incoerente e confusa nas gramáticas tradicionais do português” – ele destaca que isso ocorre, em primeiro lugar, “em virtude de uma incompreensão semântica da sua natureza”, pelo costume de associá-la intimamente ao sexo dos seres.

Para ampliar mais essa ideia de Camara Jr., a professora Doutora Hilma Ranauro, em um ensaio intitulado “A relação entre gênero gramatical e sexo – as considerações de Jerônimo Soares Barbosa e Mattoso Camara Jr.”, diz que os gramáticos de Port-Royal já discutiam essa problemática e ponderaram que a relação entre gênero dos nomes e sexo era um uso sem razão, que teria ocorrido por puro capricho, o que teria levado a que houvesse variação de língua para língua com nomes em que uma tivesse tomado de empréstimo a outra: arbor, masculino em latim e arbre masculino em francês; dens, masculino em latim e feminino em francês.

“Quando é preciso especificar o sexo do animal, ajuntamos ao seu nome promiscuo, debaixo do mesmo artigo, o adjetivo explicativo macho e fêmea, dizendo: o elefante macho, o elefante femea, a onça macho, a onça femea, etc.”, afirma.

“Devemos dizer que os dicionários apresentam os qualificativos macho e fêmea como biformes, o que nos parece uma superficialidade. Tais qualificativos servem para esclarecer o sexo dos animais, cujos nomes não têm flexão genérica. A gente diz a cobra, o urubu. Uns a gente indica pelo masculino; outros pelo feminino. Se, porém, temos de falar precisamente do sexo, ajuntamos o qualificativo macho e fêmea. E basta. Para que dizer também: a cobra macha, o urubu fêmeo?”, destaca.

A doutora Hilma Ranauro traz um questionamento interessante: “haveria diferença entre uma cobra macho e uma cobra macha? Entre um urubu fêmea e um urubu fêmeo?”

Antes de partir para o próximo trecho, quero destacar dois pontos: a incoerência da exposição de gênero nas gramáticas da língua portuguesa e o carácter dinâmico da língua. Prometo que vou avançar só mais um pouco e deixo para a próxima coluna mais algumas considerações.

Este é outro trecho do texto ao qual estou respondendo:

“Como o gênero em português é determinado muito mais pelos artigos do que pelas vogais temáticas, se vocês querem uma língua neutra, precisam criar um artigo neutro, não encher um texto de X, @ e E.”

Ana Paula Araujo Silva, especialista em linguística, em um trabalho com a proposta de repensar as marcas de gênero no português, diz que a divisão binária dos substantivos, em masculinos e femininos, é, a rigor, arbitrária, fixada pelo uso e pela norma, ou seja, alguém ou um grupo inventou e determinou para todo mundo o seu uso. O professor Evanildo Bechara – filólogo respeitado na ramo dos estudos linguísticos – aponta essa clara falta de lógica através da comparação entre diferentes idiomas:

A inconsistência do gênero gramatical fica explícita quando se compara a distribuição de gênero em duas ou mais línguas e, se a gente compara uma mesma língua historicamente na sua diversidade temporal, regional, social e estilística, perceberemos o mesmo fenômeno. Assim é que para nós o sol é masculino e para os alemães é feminino die Sonne; para nós, a lua é feminino e para eles masculino der Mond; enquanto em português mulher é feminino, em alemão é neutro das Weib. Sal e leite são masculinos em português e femininos em espanhol: la sal e la leche. Sangue é masculino em português e francês e feminino em espanhol: le sang (fr.) e la sangre (esp.).

Em português, ocorre o emprego de certos substantivos com a mesma forma para ambos os gêneros (o consorte / a consorte , o pianista / a pianista) e de outros com um único gênero sem referência ao sexo da pessoa ou animal (a testemunha, o rouxinol) – denominados comum de dois gêneros, sobrecomuns e epicenos, respectivamente, na terminologia da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB).

Há também substantivos que pertencem a determinado gênero devido a uma regra morfológica, como exemplifica Azeredo: “(…) são femininos todos os substantivos formados de adjetivos com acréscimo das terminações –idade e –idão (…)” como claro < claridade, escuro < escuridão. E ainda outros cujo gênero varia conforme o sentido (o cabeça – a cabeça, o capital – a capital), que são indiferentemente masculinos ou femininos (o/a personagem, o/a sabiá), ou apresentam o mesmo gênero de uma base elíptica como exemplifica o professor doutor Evanildo Bechara:

O (rio) Amazonas, o (oceano) Atlântico, o (vento) bóreas, o (lago) Ládoga, o (mês) abril, o (porta-avião) Minas Gerais (…).

A bela (cidade) Petrópolis. A movimentada (ilha) Governador.

Nas denominações de navios, depende do termo subentendido: o (transatlântico) Argentina, a (corveta) Belmonte, a (canhoneira) Tijuca etc. (…).

Observe os seguintes gêneros:

O (vinho) champanha (e não a champanha!), o (vinho) madeira, o (charuto) havana, o (café) moca, o (gato) angorá, o (cão) terra-nova.

Conforme reconhece Ana Paula Araujo Silva, não é raro também que a confusão entre gênero (categoria gramatical) e sexo (noção biológica) implique grande ênfase na oposição entre substantivos como homem – mulher, bode – cabra, etc.

Ela ainda diz que a flexão de gênero é, assim, associada a todos os meios de distinção entre os sexos. Há de se desfazer tal equívoco, visto que os dois conceitos são claramente distintos: o gênero abrange todos os substantivos e não apenas os que denotam seres animados (providos de sexo); há substantivos que, mesmo se referindo a pessoas e animais, possuem um só gênero (a testemunha, o cônjuge, a cobra, o jacaré).

Bom, até aqui eu quis mostrar que a língua(gem) é um sistema organizado, mas não por isso incoerente e que pode se alterar de acordo com o contexto sociocultural na qual está inserida, além disso temos que levar em consideração os grupos dominantes que articulam e determinam o seu uso para todos os outros grupos, mas sobre isso vou deixar para as próximas colunas, porque é um tópico que tem “pano pra manga”.

Fontes:

http://www.filologia.org.br/hilmaranauro/arelacaoentregenero.html 

http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno11-17.html 

ARAÚJO, Luciana Kuchenbecker. “Vogal temática”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/gramatica/vogal-tematica.htm.  Acesso em 09 de novembro de 2021.

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