Muitos assuntos importantes geram polêmicas quando trazidos para o debate público. Eu acho isso muito bom, entretanto, é neste momento que as pessoas tomam parte da discussão construindo, assim, um entendimento comum. É um excelente exercício de cidadania. Além de valorizar o diálogo como princípio democrático.
A pauta a respeito de identidade de gênero é frequente hoje em dia em muitas rodas de conversas entre amigos, nas salas de aulas, na mídia de massa, nas redes sociais e, claro, gerando polêmica, concordâncias e discordâncias. Este é o movimento esperado do debate público. É comum observar também grupos de pessoas reivindicando, em seus discursos, a propriedade única e exclusiva desta pauta, alegando inúmeras justificativas, porém, vou destacar aqui que a pauta a respeito de identidade de gênero pertence a todas as pessoas ou instituições, porque, cada pessoa ao longo de sua vida vai construindo sua identidade não só de gênero como qualquer outra identidade e estas pessoas se agrupam e se encontram em organizações com diferentes papéis.
A identidade de gênero diz respeito a uma das faces de nossas muitas identidades. Ela é construída ao longo da nossa vida e assume formas variadas conforme nosso contexto social e cultural.
Antes de avançar, vamos falar um pouquinho sobre gênero?
De antemão, quero pedir desculpas se meu discurso ficar em uma linguagem mais acadêmica. Para me ajudar a abordar o tema gênero, vou recorrer, principalmente, a obra “Gênero – uma perspectiva global – compreendendo o gênero – da esfera pessoal à política – no mundo contemporâneo”, das pesquisadoras Raewyn Connell e Rebecca Pearse. Na obra, elas afirmam que existe um empenho social para orientar o comportamento das pessoas, havendo ideias a respeito de comportamentos apropriados a cada gênero circulando reiteradamente pelas posturas de inúmeros tipos de indivíduos.
As autoras afirmam que “ser homem ou uma mulher, então, não é um estado predeterminado. É um tornar-se; é uma condição ativamente em construção. […] esse processo é frequentemente debatido como o desenvolvimento da ‘identidade de gênero’”.
Apesar de afirmarem que o termo “identidade de gênero” é problemático para elas, a adoção do mesmo serve para facilitar a reflexão sobre essa categoria. Para as autoras, nossas ideias a respeito desse pertencimento e seu significado, que tipo de pessoa somos, como resultado de sermos mulher ou homem, está inserido na identidade. Elas ressalvam que essas ideias não são propostas para nós, quando somos ainda bebês, como um conjunto fechado de itens para o nosso desenvolvimento no início da vida. Não se sabe, assim, em que momento rigorosamente se desenvolvem e, ao longo da trajetória de nossa formação essas ideias vão sendo desenhadas.
De acordo com as autoras, em alguns momentos, a construção da “identidade de gênero” tem como produto um padrão intermediário, uma mistura, um contraste nítido, para os quais denominamos estranho, queer, afeminado, afetado, transgênero: homens femininos e mulheres masculinas; mulheres atraídas afetivo-amorosamente por outras mulheres e homens, por outros homens.
Ainda, conforme as autoras, o prazer, o reconhecimento e a identidade tem origem nas relações de gênero e, ao mesmo tempo, tem também origem nas injustiças e hostilidade. Isso quer dizer que o gênero é uma categoria intimamente política que se constitui em um espaço de disputa. A desigualdade e a opressão, no campo do gênero, têm levado movimentos sociais a lutar por reformas em todos os segmentos da sociedade: educação, mídia de massa, mercado de trabalho, gestão pública, legislação, direitos reprodutivos, direitos humanos etc.
Outra questão importante a se considerar aqui é o destaque que se dá a oposição do gênero existente em grande parte dos debates na sociedade que partem de uma divisão biológica entre homens e mulheres, definindo gênero como desconcertos sociais ou psicológicos que coincidem a essa divisão, sendo compostas sobre ela ou causadas por ela.
Conforme as autoras, “em seu uso mais comum, então, o termo ‘gênero’ significa a diferença cultural entre mulheres e homens, baseada na divisão entre fêmeas e machos. A dicotomia e a diferença são a substância dessa ideia”. Para superar esses impasses, a solução é enfocar as relações e não as diferenças, pois, acima de tudo, gênero é uma questão das relações sociais que incorporam indivíduos e grupos.
Connell e Pearse afirmam que o gênero deve ser entendido como uma estrutura social, uma vez que a revisão de padrões profusamente disseminados entre relações sociais é chamada pela teoria social de “estrutura”. Não é uma expressão da área biológica, tampouco uma dicotomia inalterável na vida ou da índole humana. É um modelo em nossos ajustes sociais a partir do qual as práticas do dia a dia são ordenadas.
De modo informal, elas dizem que gênero é relativo à maneira com que as sociedades humanas encaram os corpos humanos e o seu encadeamento e como enfrentam a repercussão desse “encarar” para nossas vidas pessoais e nosso destino coletivo.
Preciso de ter lugar de fala para me posicionar sobre algo?
A resposta é óbvia, não, mas, calma lá, precisamos refletir um pouco mais sobre o que é a atitude de falar sobre pautas socialmente relevantes.
Para começar, quero trazer aqui uma frase de Djamila Ribeiro, filósofa, feminista negra e escritora: “o lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e outras perspectivas”, esta frase faz parte do seu livro O que é lugar de fala?, lançado em 2017, ou seja, não é porque uma pessoa é gay que ela sabe tudo sobre ser gay, porém, certamente, suas experiências trazem outros pontos de vista sobre o assunto.
Muitas vezes não enxergamos a realidade que há por trás de certas situações, por exemplo, quando falamos sobre gênero, às vezes nos escapa a compreensão do todo e do particular. Já ouvi inúmeras vezes que eu, Thiago Saveda, falo como um homem gay do alto do meu privilégio de estar dentro do padrão imposto para homens – não afeminado, branco, cis. Isso seria um desqualificador no sentido de que eu não teria propriedade para abordar pautas sobre gênero já que não sou alvo da opressão dos gêneros. É um grande equívoco pensar dessa maneira. Até porque as violências acontecem de todas as formas sobre todos os corpos, além do mais, cada um sabe o tamanho da sua dor e como ela dói.
Vou eu falar da minha vida de novo. Quando eu era criança, eu era olhado pelos outros como o “esquisito”, até minha mãe falava isso. Eu não entendia muito bem, mas já sabia que existia aí uma diferenciação importante. Até que de esquisito comecei a escutar “bichinha” e “viadinho”. E foi evoluindo à medida que eu ia crescendo. Enfim, fui acusado de ser gay a minha adolescência inteira, sem mesmo saber o que isso significava, mas, uma coisa eu sabia, que isso estava relacionado aos xingamentos e exclusão diária na escola, na rua onde morava e até dentro de casa, meu irmão era o meu principal agressor. Vez ou outra a agressão também era física. A minha dor maior era, com certeza, não ter amigos, coisa que sempre achei incrível. Eu sempre achei a amizade uma coisa muito linda!
Eu não sabia, porém, um dia uma amiga de infância – a única que eu tinha de fato – me olhou e, sinceramente, me disse, “você não percebe que você parece uma menina, seu jeito de andar, falar, de se comportar é de uma menina”. Aí fui entender o grande problema da minha vida: para todos os outros, eu parecia com o feminino.
Bom, retomando, todas essas violências se tornaram marcas que carreguei sangrando por muito tempo e que hoje ainda carrego mais que cicatrizaram, de vez em quando, alguém cutuca e sangra.
O que eu quero dizer com esta parte da história da minha vida? Quero dizer para as pessoas que me olham, me julgam e me querem tirar o direito de falar sobre gênero que vocês não vão me tirar este direito nem que esperneiem, gritem. Tenho direito sobre a pauta como todas as pessoas que, indelevelmente, constroem, ao longo da sua vida, a sua identidade de gênero. Minhas poesias, minhas narrativas, minha dissertação de mestrado, meus artigos, minhas colunas da Colors DJ Magazine, meus trabalhos artísticos e acadêmicos são e serão sobre gênero e ninguém vai mudar isso.
Enfim, para encerrar, quero destacar um coisa importante, gênero faz parte de uma arena social de disputa, então, temos que constantemente, nos confrontos discursivos, negociar a pauta indiferentemente se quem fala é branco, preto, pardo, homem, mulher, LGTBQIA+ ou não, colocando para todas, todes e todos o nosso ponto de vista elaborado em cima de nossos vivências, nossos estudos, leituras, de forma honesta e empática.
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Referências
RIBEIRO, Djamila, O que é lugar de fala? Djamila Ribeiro. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
CONNELL, Raewyn; PEARSE, Rebecca. Gênero: uma perspectiva global. São Paulo: nVersos, 2015.
CONNELL, Raewyn. Gênero em termos reais. Tradução: Marília Moschkovich. São Paulo: nVersos, 2016.