Pensando em eventos de techno, logo vem à nossa mente toda uma atmosfera densa e obscura de festa. Uma pista mais escura, quase que em um tom cavernoso, pessoas dançando de forma introspectiva, uma linha sonora mais pesada comparado com festas de outros estilos e por aí vai.
Mas por trás de tudo isso, há um árduo trabalho de produção de um evento assim. Principalmente, sob um contexto underground. Além das dificuldades enfrentadas por todos os profissionais que atuam para fazer um evento acontecer, os responsáveis pela idealização e execução das festas para esse mercado enfrentam empecilhos políticos, legais e sociais para realizá-las nesse contexto.
Com a minha vivência na cena, percebi que a produção de eventos num contexto underground é um tema pouquíssimo difundido no meio. Apesar de termos muita gente boa desempenhando exemplarmente essa função, não encontrei muito material enquanto fazia umas pesquisas. Por isso, vi a necessidade de trazer esse texto.
Dentro do coletivo que faço parte, a Ciclo, ajudo em alguns aspectos relacionados, mas acabo exercendo outras funções mais voltadas à produção cultural. Sendo assim, decidi enviar perguntas a alguns produtores de evento que acompanho o trabalho, para que pudesse ter o embasamento necessário para produzir este texto.
Conversei com a Lolly Stardusty, que produz a Vortex 323 em SP, e com Donna Bagos, que produz a Donna Baggos: A Festa, em Curitiba. As perguntas também foram enviadas para Richard e Alef, responsáveis pela Glitch, de Florianópolis.
O evento underground
Antes de começar a discorrer as perguntas enviadas aos produtores, gostaria de trazer à luz o que eu entendo por evento underground, pois isso será um ponto que norteará todo o desenvolvimento do texto.
O pesquisador Thiago T. Neves (2013) aponta que inicialmente, após uma estruturação maior da cena rave, as festas do tipo underground, entre outros aspectos, caracterizam-se por uma divulgação menor, que geralmente ocorre de maneira boca a boca; sua estrutura física é bastante alicerçada em locais desocupados e, em grande parte, os artistas que se apresentam são frequentadores da cena local. Logicamente, essa visão é de certa forma mais limitada, pois atualmente, com o alcance das redes sociais, por exemplo, o aspecto de divulgação de um evento pode tomar proporções enormes por meios orgânicos.
Os eventos de techno nascem num cenário às margens da sociedade, sendo assim, inevitavelmente surgem em um contexto underground. Lugares nem sempre regularizados para realização do evento, infraestrutura muitas vezes precária e um recorte local de artistas. Todos esses elementos são comuns aos eventos desse tipo no início da cena.
Mas o tempo passou e muita coisa mudou. Mesmo com pouco recurso, a coletividade se mostrou uma excelente ferramenta para que artistas independentes unam forças e consigam realizar eventos de grande impacto ao público.
Alguém consegue o som, outras pessoas o equipamento, a luz e o bar ficam a cargo de outros, e, assim, ocorreram várias primeiras edições de eventos que tanto gostamos hoje em dia.
Entendo o evento underground primordialmente realizado de forma autônoma, no sentido de pessoas independentes que realizam a idealização e execução dessas festas sem, pelo menos de início, estar ancorados em grandes parceiros mercadológicos.
O contexto atual dos eventos
Em um cenário pós pandêmico, onde os eventos começaram a ser novamente liberados recentemente, muita coisa mudou. O distanciamento afetou as pessoas de diversas formas, e não seria diferente na relação com as festas.
Os produtores de eventos estão se familiarizando com os novos gostos de seu público, com suas novas necessidades e exigências.
Além disso, novas diretrizes para a realização de festas estão em vigor, o que afeta diretamente o planejamento desses eventos.
Aspectos como a saúde mental dos frequentadores é algo que não pode ser deixado de lado, visto o número crescente de crises psicológicas que esse período aflorou. Além disso, a maior emergência sanitária que o mundo já viveu também nos ensinou a olhar com olhos mais cuidadosos para questões como redução de danos.
Eventos que estão levando essas circunstâncias mais a sério saem na frente junto ao público. Pelo que vi, esses são pontos que as festas destinadas ao underground têm se atentado, diferentemente dos eventos mainstream, que continuam focando apenas em lucro.
Para entender o contexto geral que os eventos se encontram atualmente, inevitavelmente precisamos direcionar o olhar para os impactos gerais que o setor cultural sofreu durante a pandemia.
Os grandes e gananciosos quebraram ou enfraqueceram, já os pequenos que se uniram ganharam voz na cena. Logicamente, não se aplica a todo um setor, mas muito do que se viu foi isso.
E isso não foi só notado pelo público, mas, também, foi acolhido muito bem. A aceitação dos frequentadores é o fator de maior importância para aferir o sucesso de um evento. Para o mercado underground, isso é fundamental. Vender a ideia de um local seguro, que ao mesmo tempo funcione como um escapismo social, pode ser a premissa de muitos eventos de música eletrônica. Mas, o quê faz o frequentador optar por um evento de menor proporção, que nem sempre vai ter um redliner conhecido e renomado?
Com toda certeza, uma festa underground não vende apenas a ideia de um simples evento feito com poucos recursos; o que podemos ver analisando casos que deram certo, é onde há uma entrega de todo um universo ideológico que permeia esses espaços.
Partindo dessa ideia, entende-se os motivos das pessoas aderirem a eventos assim com tanta garra. Elas não apenas vão à festa – elas as representam. O público se sente parte do rolê tanto quanto quem organiza ou se apresenta, não se sente no lugar de apenas um consumidor.
Esse posicionamento de núcleos enquanto produto cultural, na minha visão, é o que mais tem fomentado o fortalecimento da cena brasileira. Grandes festivais vêm, trazem grandes nomes, um sistema de som de qualidade em um lugar gigantesco e, quando acaba a desmontagem, voltam com os bolsos cheios de dinheiro para seu país de origem e apenas interagem com o raver brasileiro na próxima edição.
É o mercado formado pelos núcleos do underground que impulsiona a cultura musical nacionalmente – esse trabalho de “educar” o frequentador das festas é o mais demorado e árduo de se fazer. Grandes celeiros nacionais da cena, como São Paulo, já apresentam uma autossuficiência muito grande na execução disso.
E são essas ações que o público, já educado na cena, vê e valoriza frente à dúvida de ir a um evento gigantesco ou underground.
Paralelo a isso, não podemos deixar de fora a situação política que o Brasil vive hoje. Um governo que se esforça para derrubar incentivos para área da cultura e ao mesmo tempo limita a expressão artística apenas a uma parcela conservadora e elitista de arte. Uma economia totalmente destruída, onde a população passa fome e briga por ossos. Tudo isso cria um cenário, no mínimo, desesperador.
O setor da cultura, onde os eventos estão inseridos, foi um dos mais dilacerados pela direita conservadora que assumiu o comando do país em 2018. Como se isso não fosse o suficiente, a pandemia veio e varreu muito da esperança que os profissionais dessa área tinham.
Assim, podemos dizer que fazer cultura atualmente é um ato político no Brasil, principalmente se tratando da cultura underground, geralmente vinda de grupos marginalizados e oprimidos por quem devia dar assistência e governar TODA uma nação, não apenas fazer governo para pais, filhos e esposas pertencentes de uma sociedade de conservadorismo.
Levando em consideração tudo o que foi dito sobre o contexto atual dos eventos independentes, vamos entender agora o quê as pessoas que planejam e executam essas festas têm a dizer sobre tudo que tange esse trabalho.
O evento underground da criação à ascensão?
Os produtores que convidei para responder às perguntas criadas para a formulação desse texto não foram ao acaso. Pensei em eventos onde vejo genuinamente, que considero underground aplicado na prática e com boa resposta de público. Mandei para eles as mesmas seis perguntas, em que questionei os seguintes aspectos: como surgiu o evento que produzem; como avaliam o cenário atual de eventos; o que consideram um evento de sucesso, entre outras indagações.
Os profissionais escolhidos fazem eventos onde a comunidade LGBTQIA+ se vê segura, não muito distante das minhas vivências – isso é um dos pontos que mais presto atenção quando um evento se denomina underground.
De forma geral, noto que o surgimento desses eventos se deu quando os profissionais responsáveis por sua execução perceberam a falta de festas destinadas a determinado público nas cidades onde residem. Seja um espaço mais igualitário em questões de gênero, como no caso da Vortex; em Curitiba, Donna Bagos queria uma maior visibilidade da arte transformista; e a Glitch surge para dar corpo a uma, até então, pequena cena eletrônica LGBTQIA+ em Florianópolis.
A criação de um local de aceitação e segurança foi o que motivou todos os entrevistados a criarem eventos onde isso fosse premissa básica. Isso mostra que o público viu nesses eventos essa ideia, e, ali, se viu representado; seja pelo espaço que o acolhe e protege, seja por expressões artísticas de corpos, que, assim como eles, sofrem opressão e não teriam esse destaque em outros lugares.
Quando há essa aderência do público ao evento, ele começa a ganhar bagagem conforme suas edições vão acontecendo, e isso gera visibilidade e notoriedade.
Uma festa underground pode ganhar visibilidade justamente mostrando artes e culturas de corpos que geralmente não são postos em evidência. A partir do momento em que esse evento começa a ganhar notoriedade ao ponto de se tornar um produto cultural de sucesso, vejo como muito importante que utilize essa voz conquistada para manter o alinhamento ideológico que a colocou em destaque. Sendo este um ponto levantado aos produtores entrevistados.
Compilando e interpretando suas respostas, chego à conclusão de que um evento não deixa de ser underground quando começa a se estruturar, ganhar parceiros e patrocinadores. Muito pelo contrário, é a oportunidade que ele tem de elevar ainda mais o destaque para expressões artísticas vindas de grupos marginalizados e, também, promover a transformação de espaços que não costumam ser acolhedores com corpos dessas comunidades, tornando-os um lugar seguro para essas pessoas e dando visibilidade para culturas que têm seu acesso dificultado por não pertencerem a uma elite cultural predominante.
Para que isso aconteça, é primordial que haja um trabalho de direcionamento do evento enquanto produto cultural. Afinal, como marca, direcionar as edições de sua festa para um público que não é “bem-visto” pela sociedade o poder público pode gerar vários obstáculos, mais do que em festas de sertanejo universitário, por exemplo.
Há um grande desinteresse por órgãos regulamentadores para que haja um facilitamento da difusão da cultura por meio do evento underground. Sobrando aos núcleos fora do mainstream a responsabilidade de manter a cultura em constante crescente no país, mesmo sem qualquer tipo de auxílio para isso.
Além disso, o cenário underground vem levantando premissas básicas em seus eventos, que buscam ser mais amplos, acessíveis e igualitários. Como lembrado por Donna Bagos, eventos que tomam essas características para si acabam se tornando exemplo para que outros já consolidados possam repensar sua forma de execução.
O evento underground pós pandemia
Houve um profundo desamparo ao setor cultural durante a pandemia e isso ainda é uma realidade, pois, além da pandemia não ter se extinguido, a desvalorização intencional que o governo trata a cultura é cada dia mais nítida.
Em meio a esse ambiente nada acolhedor para a produção cultural, os eventos começaram a retornar. Lembrando aqui que a inflação no Brasil está em níveis desesperadores, então, para o produtor, que chegou feliz achando que ia produzir seu evento, viu que absolutamente tudo está mais caro, do aluguel de espaço e equipamentos ao limão que vai na caipirinha do público.
O público que vai nos eventos undergrounds são pessoas que, além de também estarem sofrendo com a situação econômica do Brasil, já não tinham um poder econômico elevado antes, imagine agora.
O jogo de cintura que esses profissionais estão tendo é algo absurdo. Como não perder qualidade na entrega, conseguir pagar todos os envolvidos e ainda assim repassar isso da forma menos agressiva possível ao público? Isso, vindo de um contexto de dois anos sem levantar caixa nenhum.
Aliado a tudo isso, há uma parcela do público que ainda não tem muita consciência. Nos eventos de volta, deram preferências a grandes nomes internacionais enquanto artistas brasileiros mal conseguiam se sustentar.
Contudo, nesse momento que vivemos a produção cultural no recorte do underground é resistência. Resistência de existir e fazer, mesmo com todos esses empecilhos, vemos eventos acontecendo, começando a ganhar fôlego em suas edições e difundindo essa cultura que, em pleno 2022, ainda está marginalizada e oprimida.
Foto de capa: Nicole Lukiys tocando na Tríade por Bia Alves.