Acho que minhas pálpebras estão caindo.
No espelho, não sou mais a Vera de antes.
Estou cansada, envelhecida, sozinha.
Vivendo entre o céu e o Inferno de Dante.
Certa noite no meu camarim vazio.
Eu ouvia a pista em êxtase, vibrante.
Foi um bom show, confio.
Muitas risadas e o sorriso constante.
Eu com vontade de casa, meu gato, boa vida.
Tava mesmo precisada de um pouquinho de mim.
O meu assistente já me aguardava na saída.
Uma fila sonhada de fãs. Era hoje o meu fim.
Meu desejo era me desmontar.
Mas como encará-los como José?
Sou Vera Primaveril, a primeira!
A drag queen dos sonhos, a princesa.
Caminhei no meu salto a lá Gaga.
E fui abordada por clientes eufóricos.
Mas despistei até a porta, uma saga.
E lá estava ele, o meu anjinho metafórico.
Tímido, inocente e pequenino.
Seus olhos marejados me perseguindo.
Era de contínuo assim, o meu Juninho.
Novato na cidade grande, um severino.
Ele me estendeu sua mais recente carta.
Já perdi a conta de quantas eu recebi.
Sorri e dei um beijo em sua bochecha.
Deixando a marca do meu batom rubi.
E ele retribuiu. Seria aquela uma lágrima?
Era mais uma mensagem cafona e eu amava:
“Vera, a mais bela flor de felicidade repleta.
Só você o meu sonho, só você me completa.”
Entrei no carro e com um aceno fiz minha despedida.
Mal sabia que aquela seria a última, injusta assim.
E hoje estou de volta ao meu camarim, destruída.
O meu olhar caído, sem cor e distante de mim.
Não tenho mais a resposta, não tenho a plateia.
Desfruto de um par de câmeras emprestadas.
E de uma equipe pequena numa mísera ideia.
Um capital magro pra me encher de balelas.
Na mesa, a minha máscara de lantejoulas.
Coloquei-as para ficar assim: ‘diferentona’.
Aquelas máscaras de hospitais me davam arrepios.
Ainda sou uma drag, o escândalo, a Madonna!
Mas socorro! Vivemos uma pandemia.
Um gosto amargo que impregna e limita.
E que chegou atrevida, derradeira e egoísta.
Sem data pra ir embora, sádica e masoquista.
Fiz o meu show escondendo minha dor.
Nenhum olhar curioso na plateia.
Apenas o monótono frio pra sugar o calor.
E eu, uma Norman Desmond iludida à procura do amor.
Terminada a performance, eu me desmontei.
Meu assistente me aguardava com um cartão.
Disse que mandaria pra equipe e subiria nas redes.
Um novo mundo virtual, minha recente solidão.
Caminhei até a rua e era eu, o José, sem fé.
Abri a porta e a calçada estava inóspita e obscena.
Da esquina, um par de faróis se aproximava.
Eram dois holofotes grandes para compor a cena.
Eis que escuto meu nome: “Vera!”
Olhei para trás e reconheci aquele olhar.
Dois pontinhos pretos de jabuticabas brilhantes.
Tão familiares, mas ao mesmo tempo distantes.
“Ele deixou pra você e seria um pecado não entregar”.
E me restou uma lembrança num saco plástico de supermercado.
Agradeci sem nenhuma palavra, enquanto ele se distanciava.
Não sei se por debaixo daquela máscara um sorriso me emprestava.
Demorei um tempo para entender o repentino.
Aquele era um parente do meu querido Juninho.
O meu garoto que tanto espero, sonho e acredito.
Numa carta, a notícia: mais uma vítima do vírus maldito.
Entrei no carro e pedi ao motorista o caminho.
No saco plástico tantas outras mensagens do pequenino.
Ele fora o meu mais importante fã, o último.
E não merecia esse triste fim, sem o meu carinho.
Quantas primaveras terei para reencontrá-lo?
Seguirei Vera em sua homenagem e com toda fé.
A melhor Drag que posso, a rainha e o renascido Zé.
Um sentimento lindo me sobra, um amor que apenas é.
Ilustração: Gustavo H.
Terceira prosa poética da série “Amores e cores” de Samuel Strappa.