Em março de 2020 quem poderia prever o futuro e como estaríamos agora?
Com acesso a vacinas, mas a variante delta querendo pôr tudo a perder, e ainda sem previsão de abertura dos grandes eventos.
Não estamos aqui para fazer juízo de valor, nem levantar nenhum debate. Deixamos isso a cargo do leitor.
Cada um sabe onde seu calo aperta, cada um tem consciência, se sente confortável (ou não) em frequentar ou trabalhar em eventos durante uma pandemia.
Mas o fato é: a cena clandestina começou tímida, alçou grandes vôos e hoje se materializa na forma de grandes festivais.
Essas festas foram naturalizadas de tal forma que agências de DJs e grandes astros não tem mais nenhum pudor em tocar nem ver seus nomes associados a elas.
Até a denominação “clandestina” caiu em desuso, como um eufemismo, foi suavizada. “Clandestina” virou um “palavrão”.
Interessantes aspectos sobre esses eventos foram abordados na brilhante coluna do Wolve Logan, publicada recentemente aqui na Colors.
Sendo assim, iremos abordar mais a parte musical, ou seja, a sonoridade do tribal pós-pandemia.
Primeiro devemos observar que 2019 já dava sinais de cansaço e esgotamento da fórmula que deu certo até então.
Costuma ser assim na maioria dos setores artísticos todo final de década.
Um ano fraco de lançamentos, onde pouca gente ousou arriscar, e todos estavam de olho em uma possível “virada de chave”, que nunca veio. Veio o COVID no lugar.
Segundo, a falta que faz uma programação semanal de qualidade. Ela é referência para o público e para os outros DJs. Sem essa referência, vira um vale-tudo, uma loteria.
Abrem-se brechas para que vertentes que eram underground (como o “Guaracha”) virem mainstream.
O Rio de Janeiro já tinha passado por situação semelhante em 2013, quando fecharam as portas os icônicos The Week e Cine Ideal.
Pipocaram por todo lado as after parties, as quais não temos nada contra, apenas o fato de que têm horário e local apropriados para ocorrerem.
As consequências são sentidas até hoje. Ainda há a percepção (equivocada) de que o carioca médio prefere ouvir som de after o tempo todo, o que influencia a construção dos sets dos DJs que vem se apresentar aqui.
Na pandemia, os residentes veteranos dos grandes clubs, que eram nossos grandes “DJs educadores”, ficaram sem espaço para trazer as novidades.
E vamos logo aproveitar a ocasião para desmistificar a figura do DJ educador.
Foi criado um bicho de sete cabeças, uma falsa ideia de que o novo é chato. De que o DJ deveria tocar apenas o que o público quer ouvir.
Como dizia o genial Steve Jobs: “as pessoas não sabem o que querem, até que você as apresente”.
Temos a sorte de ter um público que em sua maioria é sim receptivo, e que à primeira batida de uma track nova (que seja boa, diga-se) vai ficar arrepiado e pensar: “nossa, que batida fod@”.
Ao contrário do público POP, que tem aversão ao desconhecido.
Eu já toquei muito em festa POP. É preciso cuidado em selecionar remixes com bastante vocal (a principal reclamação deles é que o DJ de eletrônico “estraga a música” ao retirar o vocal). Também é necessário fazer mixagens rápidas, de vocal pra vocal. Quando eles não reconhecem a música que vai entrar, simplesmente param de dançar e cruzam os braços.
Então, queridos leitores, não há motivo para temer o novo. Não creio que a era do “DJ educador” acabou nem irá acabar. Pois essa é nossa missão.
Somente colocar o povo pra dançar é fácil: uma jukebox com inteligência artificial poderia fazê-lo.
Com os clubs fechados, e sem essas referências, era de se esperar uma certa mesmice em termos musicais.
Mas isso não está acontecendo. A verdade é que sem ter um norte, cada DJ está atirando para um lado.
Como há muito tempo não se via, remixes de hits do EDM voltaram a tocar em nossas pistas (com destaque para Tiesto, que está numa fase incrível).
Alguns DJs apostam em hits atemporais de divas, o que ainda funciona.
E vários estão bebendo na fonte do POP nacional e do FUNK, efervescentes, impulsionados pelo TIK TOK. Temos visto SETs inteiros com vocais nacionais bem bacanas.
Na média, o público parece estar mais satisfeito agora do que em 2019!
Temos uma teoria que poderia explicar em parte esse fenômeno.
Com datas escassas, muito tempo parado e sangue nos olhos de tocar, pela primeira vez, a maioria dos DJs está tocando para o público.
Oi? Como assim? Mas eles não tocavam antes? Veja bem: nem sempre…
Os clubs são, em sua maioria, ambientes tóxicos para os DJs.
Isso influencia as apresentações, pode fazer com que profissionais “toquem para outros DJs”, ao invés de tocar para o público.
O medo de apertar o play em algo que não seja “bem visto” pelos colegas, sempre presentes em grande número, era real.
Ainda mais quando se era contratado por um grande club ou selo.
Sabe aquele comediante engraçado, que estoura e é contratado pela Rede Globo? Ganha um quadro no Fantástico, mas rapidamente perde a graça?
O humor perde a espontaneidade, fica “pasteurizado”?
Com o mundo DJ é igual. Ao tentar se moldar à sonoridade do club, acaba se afastando da sua essência, que é justamente o que lhe trouxe até ali.
Isso parece não acontecer nos eventos clandestinos.
Longe dessas amarras, os DJs aparentemente estão tocando mais felizes e relaxados, deixando a criatividade fluir.
Então o que podemos fazer para melhorar nossa cena? Penso que dois aspectos:
1) Vários talentos surgidos durante a pandemia (os quais são muito bem vindos, precisamos sempre de renovação) precisam de mais experiência, e um pouquinho mais de base teórica. Estudar sobre o passado, sobre o que já foi feito, para poder ter mais propriedade para tocar e produzir. Senão, corre-se o risco de “reinventar a roda”.
2) Desde o cenário pré-pandêmico, nos descolamos demais da cena Tribal mundial. O que é péssimo.
Um pequeno exemplo: Offer Nissim lançou recentemente uma track incrível, na voz de Deborah Cox: “Summer of Love”.
Em outras épocas, causaria comoção. Até agora, tem passado batida.
Precisamos urgentemente voltar a tocar os lançamentos dos grandes mestres do circuito europeu, de Israel, Estados Unidos, México, e também das novidades que aparecem lá fora. Até a Ásia tem despontado com talentos incríveis (uma dica: procure saber sobre DJ Toy Armada e DJ Big Kid).
Está faltando aos nossos DJs essa pesquisa musical, para poder enriquecer mais nossa cena. E coragem para tocar o que foi pesquisado.
Transcrevo aqui um pequeno trecho de entrevista do mago Peter Rauhofer à Folha de São Paulo, em 2005:
“Folha – Então o público gay não tem a cabeça aberta?
Rauhofer – Não muito. Eles querem ouvir o “som deles”. É muito difícil educá-los musicalmente. O problema geral da comunidade gay é que eles se sentem num mundo próprio e não querem nada diferente. São muito implicantes. Acabam não tendo a cabeça aberta. Eles só confiam no que acontece dentro do universo gay, e muitas vezes é difícil convencê-los de que há outros estilos.
Folha – Alguns dizem que os gays não ouvem música boa.
Rauhofer – Depende do DJ que toca. Estou falando da grande maioria dos gays que saem para dançar em clubes à noite. Você tem de enganá-los, tocar o que eles querem e combinar com músicas diferentes das que eles ouvem normalmente.”
De certa forma, Rauhofer e Jobs, cada um dentro do seu segmento, versaram exatamente sobre esse comportamento humano. E é sobre isso que precisamos falar mais.