TONI

ENTREVISTA | Toni Mazzotti: o consumo (consciente) de drogas e sua relação com a cena

Por que a cena eletrônica é tão estigmatizada e, consequentemente, mais associada ao consumo de drogas?

O avanço na discussão sobre drogas depende primeiramente de entendermos que consumimos drogas o tempo todo. Sejam as drogas agrotóxicas que não são psicoativas, ou sejam as psicoativas de supermercado, das drogarias, dos bares ou das bocas. Estamos constantemente modulando o nosso humor, mas não somos os únicos animais com esse comportamento. Na natureza, a alteração de consciência se mostra tão importante que muitas espécies se expõem ao perigo ou deixam de comer para alterar suas consciências, ou, nos nossos termos, se drogar.

As drogas da música eletrônica são plantas ou substâncias similares sintetizadas, muito úteis e pouco perigosas, usadas xamanicamente por todas as culturas nativas e tratadas por elas com maior grau de importância do que o alimento do corpo. Estas plantas são a maconha e os 3 psicodélicos clássicos de uso recreativo: o LSD (similar a Ergolina), a Psilocibina (dos cogumelos) e o MDMA (similar a Mescalina). O DMT, presente na Ayahuasca e produzido pelo nosso corpo, também é um dos psicodélicos clássicos, mas não se adequa ao uso recreativo.

A realidade é que não há como dissociar! A música eletrônica rápida, longa e repetitiva nasceu entre os anos 70 e 80 a partir do consumo massivo do Ecstasy, que é a mistura de MDMA com estimulantes como cafeína ou anfetamina. Antes disso, por mais de 20 anos, o MDMA foi usado somente terapeuticamente onde ficou conhecido como a droga do amor, ou a droga anti guerra, ou ainda a penicilina da alma.

O MDMA é reconhecidamente a droga que mais rapidamente se tornou popular da história, e como para cada nova droga que se populariza, toda uma nova cultura eclode por consequência, sua criminalização em 1988 acabou estigmatizando toda a cena eletrônica que, desde então, foi empurrada para o Underground.

Toni, com o crescimento do ativismo antiproibicionista (e canábico) mundial, você acha que o maconheiro precisa sair logo do armário, ou vai da empatia e engajamento de cada um?

Eu fumo Maconha e faço microdosagem de psicodélicos regularmente há mais de 10 anos. A microdosagem é o uso diário de uma dose quase imperceptível. Apresenta resultado imediato para dependência em outras drogas, ansiedade e depressão. Eu sou do time que acredita que os psicodélicos e a maconha precisam voltar e integrar nosso cardápio, como sempre foi antes de 1971.

Quem quer que possa declarar publicamente seu consumo não problemático de maconha e psicodélicos, irá ajudar a desmantelar a pior política pública que já inventamos. A Guerra às Drogas será vista num futuro próximo como uma nova inquisição. É simplesmente a maior, mais cara, com mais mortos e com mais presos que qualquer outra guerra, porque acontece todo dia, em todo mundo, desde 71, com a triste função embutida de controle social.

O curioso é que esta terceira guerra mundial se justifica principalmente através da criminalização do xamanismo.
Uma vez que a maconha e os psicodélicos são as principais substancias xamânicas e juntas representam 80% do mercado ilegal das drogas. Ou seja, somente 2 em cada 10 usuários que vão até as bocas estão interessados em todas as outras drogas. Em última análise, isso faz da Guerra às Drogas uma guerra contra a nossa saúde mental e evolução de consciência.

Como a maconha representa 75% do mercado ilegal, sua legalização significa o fim desta guerra. Lembrando que legalizar significa “colocar dentro da Lei”, o que é completamente diferente do que os proibicionistas demagogos propagam. Não caia nessa, legalizar é o único jeito de controlar a produção, a comercialização e o consumo. Assim como acontece com todos os demais produtos legalizados que compramos.

A cena eletrônica tornada underground pela proibição é onde mais se consomem psicodélicos recreativamente, assim como também se consome bastante cannabis. Atualmente, com a massificação da informação sobre os múltiplos benefícios e os baixos riscos, assim como com as mudanças positivas das políticas de drogas pelo mundo, acredito que agora seja sim o momento de sair do armário.

Sob a perspectiva da cena eletrônica, onde o uso recreativo de substâncias (talvez) seja mais “aberto” que nos outros movimentos culturais, você acredita numa relação direta da própria música – a estética dela – com o seu consumo?

A música eletrônica é a trilha sonora da cibercultura, que surgiu após a explosão psicodélica dos anos 60, na Califórnia. É fácil encontrar relatos de profissionais do Vale do Silício sobre a influência da microdosagem de LSD desde aquela época para a consolidação desta cultura tecnológica. Outro fator que conecta esteticamente a cibercultura diretamente ao LSD é o caráter microscópio desta droga. O LSD é dosado em microgramas, ou seja, uma dose individual de LSD é 1000x menor do que das outras drogas, dosadas em miligramas. Isto faz do LSD muito mais difícil de proibir e falsificar, por exemplo.

Esteticamente, de alguma forma, essa característica microscópica do LSD se expressa na própria estética musical do seu gênero eletrônico dedicado, o Psytrance, que nasceu na índia nos anos 90 da fusão do LSD, da Música Eletrônica e da Yoga. Os chips e placas de circuito impresso são caminhos minerais por onde impulsos elétricos minúsculos são ordenados. É um universo microscópico criado sob influência de uma droga microscópica.

Ao longo das últimas décadas, as festas eletrônicas têm oferecido espaços especiais e acolhedores para tratamento da questão da redução de danos. (Fale um pouco dessa relação, se possível, citando alguns coletivos mais expressivos em ação no Brasil)

O melhor exemplo de como a mudança na política de drogas se converte no amadurecimento da cena eletrônica é o caso de Portugal, que em 2001 descriminalizou o uso de todas as drogas. No mesmo ano, talvez influenciado por isso, começou por lá o Boom Festival, considerado hoje o maior e melhor festival do Global Trance Movement. A californiana MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies), que é a principal instituição do gênero no mundo, organiza ações de Redução de Danos nos principais festivais e considera o público do Boom o menos problemático e mais consciente sobre o uso de drogas, sendo capaz de treinar terapeutas a partir dos voluntários do festival.

O Ceará é pioneiro nas ações de Redução de Danos dentro de eventos eletrônicos no Brasil através do coletivo BalanCeará, que contou com o apoio institucional do Governo Federal e que começou suas atividades nas festas ENTRANCE do NuACT.

Se só podemos resolver um problema após aceitar que ele existe, além do RD, que outras ações os articuladores culturais poderiam adotar para reeducação raver e clubber, diante do abuso de algumas substâncias?

Precisamos nos reeducar sobre o assunto. Precisamos aprender as diferenças entre cada droga. E precisamos, por fim, aceitar que cada cultura tem o seu “alimento do espírito”. É inadmissível um produtor de eventos eletrônicos ser proibicionista.

Precisamos também reduzir o protagonismo do álcool em nossa cena. Essa droga inibe o efeito dos psicodélicos e é muito mais problemática, não apenas nos eventos do entretenimento mundial, onde predomina como patrocinadora, mas também na sociedade como um todo. Pra mim é muito triste ver uma cervejaria patrocinando um festival de Trance ou de Techno. Não me entendam mal, eu sou anti proibição. A questão é que a nossa onda é outra.

A predominância do álcool, que acontece também pela nossa baixa educação sobre o tema, atrapalha inclusive a próprias arte e cultura psicodélicas.

Partindo dessas perguntas básicas, onde analisamos um lento desenvolvimento de políticas sobre drogas e o surgimento de outros movimentos divergentes ao proibicionismo, qual é a situação atual no Brasil diante da possibilidade do consumo medicinal?

O momento político atual no Brasil é sombrio e até as ações de Redução de Danos tiveram seu apoio Federal retirado pelo atual governo, mas, por outro lado, temos aqui uma das maiores cenas recreativa Trance Open Air do globo. Além disto, a nossa cena religiosa é a única do mundo com cerca de 60 mil pessoas bebendo o mais potente dos psicodélicos, DMT, através da Ayahuasca, regularmente e dentro da Lei. Talvez por isso eu ainda acredite que o Brasil é o país do futuro.

Em 2016 editei e dublei um mini documentário dirigido pelo cientista Eduardo Schemberg, maior autoridade em psicodélicos no Brasil. Com este Doc conseguimos 50 mil reais em financiamento coletivo e, apoiados pelo Ministério da Saúde, incluímos o Brasil nos testes clínicos mundiais que atualmente estão prestes a legalizar o MDMA e, com isso, abrir a porta da legitimação da terapia psicodélica em consultórios também para as demais substâncias psicodélicas.

A promessa é que a terapia psicodélica venha a revolucionar a psicologia e a psiquiatria. O que não deixa de ser um resgate do xamanismo.

Ajude a Legalizar a Terapia Psicodélica no Brasil
https://www.youtube.com/watch?v=fsnUPHwiV0M

COMPARTILHE:

Instagram