COLUNA | IDENTIDADE DE GÊNERO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

A dignidade é um atributo humano, intrínseco e distintivo, previsto na Constituição Federal de 1988[1], tendo como seu princípio absoluto a obrigação estatal em garanti-la, por ser o Brasil um Estado Democrático.

Trata-se de um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram condições mínimas humanas existenciais.[2]

Assim, entende-se por dignidade da pessoa humana um conjunto de quatro corolários: igualdade, integridade psicofísica, liberdade e solidariedade.[3]

Em que pese na teoria esses direitos serem os mesmos para todos, a realidade é distorcida.

É percebido que, ao passar dos anos, os abusos existentes contra a comunidade LGBTQIA+ são responsáveis, mormente, pelo seu enfraquecimento da autoestima e integridade, o que reprime sua identidade.[4]

Apesar de a revista ser colorida, acredito que muitos leitores ainda têm dúvidas sobre o tema. Portanto, entendo ser necessário explicar os conceitos, para que saibam distinguir, mesmo que de forma simplificada, as seguintes terminologias: orientação sexual, identidade de gênero e sexo biológico.

Em resumo, a orientação sexual está voltada para a preferência sexual e afeto, que constitui nos aspectos físicos e emocionais do indivíduo. Assim, não se trata de interesse próprio pelo ato sexual, “é o aspecto central de nossa personalidade, por meio da qual nos relacionamos com os outros, conseguimos amar, ter prazer e procriar”[5], bem como consiste na “profunda atração emocional, afetiva ou sexual, por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com estas pessoas”.[6]

Em contrapartida, é entendido por gênero a identidade do sujeito, da mesma forma que a etnia, classe, nacionalidade etc. É como o indivíduo se reconhece, é o seu “ser”, conforme padrões estabelecidos pela sociedade.

Caracteriza-se, portanto, como “uma forma física, maneira de se vestir, de falar, determinadas atitudes ou comportamentos e também interesses e valores”, bem como decorre do que é “construído culturalmente”. Trata-se de valores que ao longo de séculos, são incutidos na construção da personalidade de homens e mulheres”.[7]

Exemplificando, um indivíduo que, biologicamente, é um homem e passa pelo processo de transição de gênero para mulher, dependendo da sua identidade afetiva/sexual, pode se interessar por homens ou por mulheres, ou pelos dois, ou por nenhum deles.

A identidade de gênero não interfere na orientação sexual.

Entendo que o mínimo para garantir ao ser humano a sua dignidade e cidadania plena é dar-lhe o direito de se autodeterminar; de se sentir à vontade consigo mesmo, seja em relação ao próprio corpo, mas, ainda, poder se libertar de rótulos; é poder viver sem medo da violência física e moral, bem como a discriminação por parte do Estado, sociedade, comunidade e família.

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Todos os direitos humanos são universais, interdependentes, indivisíveis e inter-relacionados. A orientação sexual 1) e a identidade gênero 2) são essenciais para a dignidade e humanidade de cada pessoa e não devem ser motivo de discriminação ou abuso. (YOGYAKARTA, Introdução aos princípios)[8]

A classificação limitada e polarizada no que se refere ao gênero, é cada vez mais discutida e inserida na sociedade, a necessidade de desconstrução da oposição binária, masculino e feminino, o que significaria problematizar tanto a oposição entre eles quanto a unidade interna de cada um. Implicaria observar que o polo masculino contém o feminino (de modo desviado, postergado, reprimido) e vice-versa.”[9]

Faz pouco sentido, então, afirmar que a função natural da mulher é dar a luz, ou que a homossexualidade não é natural. A maior parte das leis, normas, direitos e obrigações que definem masculinidade e feminilidade refletem mais a imaginação humana do que a realidade biológica. (HARARI, Yuval Noah, p. 156)

É MENINO OU MENINA?

Podemos dizer que essa classificação binária não corresponde à realidade. Tanto é verdade que o indivíduo intersexual  (representado pela letra “I” da sigla LGBTQIA+), antigamente também conhecido como hermafrodita, não se encaixa biologicamente na classificação feminina ou masculina.

O intersexual apresenta variações genéticas, podendo fisicamente aparentar um gênero e geneticamente possuir características de outro – como genitálias, produção de hormônios, cromossomos etc.

Muitas vezes, a descoberta dessa identidade vem de forma tardia, na adolescência, por exemplo.

Foto: Suz Temko. Fonte: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/02/15/agora-sei-por-que-nao-menstruo-jovem-conta-como-se-descobriu-e-se-aceitou-intersexual.ghtml

Ser intersexual não é difícil. O difícil é ver como a sociedade te trata.

Todas as batalhas psicológicas que travei foram realmente por causa de como a sociedade reage a pessoas como eu.

A identidade de uma pessoa não é algo simples. Não sou apenas intersexual. Tampouco só uma sobrevivente de câncer.

Nenhum de nós é uma coisa só. – Suz Temko[10]

Em alguns países, como a Alemanha e a Austrália, existe a possibilidade de se marcar na certidão de nascimento um terceiro gênero, visando resguardar os direitos dos intersexuais.

Desde 2013, na Alemanha, por exemplo, é possível, para esses casos, não informar o gênero na certidão de nascimento.[11]

Fonte: Sentença proferida pela Juíza Vânia Petermann – Fórum da UFSC – O número do processo é omitido por se tratar de segredo de justiça

No Brasil, a realidade é outra. A classificação do registro civil ainda é binária.

Em contrapartida, no que se refere à identidade de gênero do transgênero, apenas em 2018, no Brasil foi possibilitada a alteração do gênero na certidão de nascimento, sem a necessidade de submissão à cirurgia de redesignação sexual.

Historicamente, no Brasil, a primeira transgênero a se submeter a uma cirurgia para mudança de sexo genital foi Waldirene Nogueira, em 1971. Ela que se autodeterminava como uma mulher, nasceu com o sexo biológico identificado como masculino.

A cirurgia foi realizada pelo cirurgião Dr. Roberto Farina e foi acompanhada por 02 (dois) anos por uma equipe interdisciplinar do Hospital das Clínicas.

Em 1976, o Ministério Público de São Paulo denunciou o médico por lesão corporal gravíssima, sendo a Waldirene considerada vítima, uma vez que foram retirados os seus órgãos masculinos, que era algo “inalienável e irrenunciável”, tutelado pelo Estado, sendo condenado em 1978, por uma decisão eivada de maldade e preconceito.

Waldirene era chamada de “Monstro” e “Prostituta”, “Mutilado”, “Eunuco” pelo Ministério Público, nos autos do referido processo.[12]

'MONSTRO, PROSTITUTA, BICHINHA': COMO A JUSTIÇA CONDENOU A 1ª CIRURGIA DE MUDANÇA DE SEXO DO BRASIL – POR AMANDA ROSSI https://www.bbc.com/portuguese/ geral-43561187 - Acesso em 29/03/2020

A decisão que condenou o cirurgião foi anulada em segunda instância em 1979.

Dr. Roberto Farina também operou o primeiro transgênero masculino brasileiro, João W. Nery, em 1977, autor do livro “Velhice Transviada” (de Outubro de 2018) – o qual super indico -, que retrata a velhice de um transgênero.

Fonte: https://ponte.org/pioneiro-trans-a-trajetoria-de-joao-w-nery/

Na obra em comento, o autor pondera que desde criança

(…) a delação estava na roupa, no meu jeito de andar, na minha coragem e ousadia excessivas para uma menina, quando todos esperavam recado e polidez. Fui perseguido e humilhado em ambientes estudantil, familiar e profissional. Era sempre confundido e tachado com o que nunca fui: um sapatão.

João também ressalta que

A diferença fundamental em relação aos cisgêneros é que morremos, muitas vezes, pela nossa identidade, pelo que somos. Não só de bala perdida, mas sobretudo de bala bem dirigida.

 (…)

 Morremos também socialmente – sem educação acolhedora, sem assistência à saúde especializada, sem chance de moradia, sem abrigos apropriados, sem prisões com alas especiais, sem acesso ao trabalho formal. (…)

Ainda somos culpados por ser quem somos – de vítimas passamos a réus.

Roberta Close que também é um ícone transgênero histórico dos anos 80 e 90 – considerada na época uma das mulheres mais bonitas do mundo -, foi a primeira transgênero a ter sucesso com o pedido judicial de alteração de gênero em sua certidão de nascimento. Tal decisão foi proferida apenas em 2001.[13]

Fonte:https://www.virgula.com.br/tvecinema/ha-25-anos-roberta-close-foi-a-primeira-transexual-operada-a-posar-nua-no-brasil/)

Embora a vitória evidente, a referida decisão é dolorida de se ler, trazendo (pré) conceitos técnicos, reconhecendo como transgênero somente aquele que realizou a cirurgia de redesignação do sexo biológico.

Hoje o transgênero – apesar de não se confundir, a regra também vale para o intersexual – não precisa mais se submeter à perícia para confirmar a redesignação sexual, para alteração do gênero em seu registro civil (Irei tratar sobre a alteração do registro civil e nome social em colunas futuras).

Porém, o gênero ainda está ligado aos padrões socioculturais estabelecidos e é a forma exteriorizada do indivíduo que tem sido por muito tempo binária: masculino e feminino. Tal dualidade vem se descaracterizando com o tempo e a busca por essa desconstrução está cada vez mais almejada e necessária.

É essencial compreender que cada indivíduo é único e, por mais que seja buscado rótulo para caracterizá-lo, as variáveis sempre existirão.

Com efeito, a identidade de gênero está vinculada à própria dignidade do indivíduo. Não se trata apenas de alteração desta identificação e do prenome no papel. É obrigação do Estado garantir-lhes a sua proteção e bem-estar.

O que muitos não sabem é que, tramita no Senado o Projeto de Lei nº 134/2018, de autoria da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, denominado como “Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero”[14], que visa “promover a inclusão de todos, combater e criminalizar a discriminação e a intolerância por orientação sexual ou identidade de gênero, de modo a garantir a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos das minorias sexuais e de gênero”, pautada na autonomia privada do indivíduo.

O projeto de lei em comento garante a realização dos procedimentos médicos, cirúrgicos, hormonais, psicológicos e terapêuticos, para a adequação de identidade de gênero, através do SUS.

Possibilita ainda o início de tratamento, não cirúrgico, para a adequação da identidade de gênero a partir da idade em que a criança começa a expressar a sua identidade, desde que haja indicação terapêutica por equipe médica e multidisciplinar.

Embora sejam resguardados tais direitos e outros tantos, fundamentais à inclusão e diversidade, o referido projeto de Lei não soluciona o dilema do intersexual, em relação à sua identidade de gênero não binária. Somente o garante o direito de alterar o gênero em seu registro civil, conforme a classificação já existente.

Assim, concluo que ainda existem muitas barreiras socioculturais a serem rompidas para atendimento integral aos direitos fundamentais da comunidade LGBTQIA+, principalmente no que se refere à identidade de gênero, o que reflete a falta de representatividade no parlamento.

[1] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana

 [2] SARLET, Ingo Wolfgang, op.cit. p. 60.

[3] MORAES, Maria Celina Bodin de. Cap. 2, p. 58-140.

 [4] YOGYAKARTA, Os princípios, 2º princípio.

[5] COSTA , Ronaldo Pamplona da. p.2

[6] “Princípios de Yogyakarta”- Introdução.

[7] ZEGER, Ivone. p. 232-233

[8] Os 29 Princípios de Yogyakarta foram desenvolvidos em uma reunião entre a Comissão Internacional de Juristas, o Serviço Internacional de Direitos Humanos e especialistas do mundo todo em novembro de 2006 em Yogyakarta, na Indonésia.

[9] LOURO, Guacira Lopes. p. 34

[10] BBC NEWS Acesso em 30/03/2021

[11] DW   – Acesso em 30/03/2021

BBC NEWS – Acesso em 30/03/2021

[12]‘MONSTRO, PROSTITUTA, BICHINHA’: COMO A JUSTIÇA CONDENOU A 1ª CIRURGIA DE MUDANÇA DE SEXO DO BRASIL – POR AMANDA ROSSI

BBC NEWS – Acesso em 29/03/2020

[13] Acórdão da Quinta Câmara da Seção de Direito Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 165.157.4/5. Apelante: Adão Lucimar *****. Apelado: Ministério Público. Rel. Des. Boris Kauffmann. Data do julgamento: 22/03/2001. Votação unânime.

[14] Atividade Legislativa  Acesso em 30/03/2021

SENADO FEDERAL  – Acesso em 30/03/2021

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